quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

NA ESQUINA DA VIDA ...




Há um silêncio acolhedor, neste final de tarde ensolarado. Sentado num banco de pedra no átrio da igreja, fecho os olhos e deixo-me envolver pela brisa morna que envolve a aldeia. Estranho tempo este, no coração do Outono.

O povoado, parece adormecido. Não se vê ninguém. Os mais novos partiram para a cidade, trabalhar nas fábricas que lhes permite o sustento.Voltarão ao render do dia, quando a noite já se derrama pelas vielas frias e soturnas. 

Regressam cansados, encostados aos muros de granito. Apenas as suas sombras se arrastam ao ténue clarão dos candeeiros mortiços, como bonecos articulados sem alma e sem vida. Ao redor da aldeia, aqui e ali, uma ou outra escada a trepar às oliveiras. São os que ainda fazem da agricultura o seu sustento. Como a formiga, vão amealhando nas alojes das suas casas, a azeitona e o vinho que jorra da torneira do pipo a compasso. 

Lá fora, na noite fria, ainda se ouve o balir dos animais no redil.

Depois, há os outros. Os que se aproximam do cais da existência, encostados à bengala. Já não têm força para trabalhar, nem para tratar dos seus parcos haveres. Dependem da comunidade e vão prolongando as suas vidas, calcorreando as ruas estreitas, deste aglomerado de casas modestas. Não morreram fisicamente. Mas morreram no dia em que deixaram de poder ir à horta. Morreram no dia em que deixaram de atrelar a carroça ao jumento. Morreram no dia em que jaz no chão do pequeno quintal, o cesto de verga da vindima. Morreram no dia do milagre do azeite. Morreram.

Acordo da minha letargia outonal, embrulhado nos meus cavernosos pensamentos. Lá longe, no horizonte, começam a formar-se castelos de nuvens grossas e pardas. Em breve, choverá, nesta trégua de outono. O Farromba, passa agora por mim, arrastando uma perna, apoiado numa bengala castanha, em madeira. Percebo-lhe a pressa de chegar ao lar de idosos, antes que o hino da água se abata sobre a aldeia e os poços generosos acolham no seu ventre, o sangue que vai ser necessário em tempos de terras ressequidas.

Pela rua empedrada e estreita, fujo também da borrasca anunciada. E, ao meio da viela, ali, naquela esquina escura, vejo o João na soleira da porta da mercearia, que também é taberna. Pressente-me apenas, porque é invisual, e estende-me a mão. Depois, conversamos. Fala-me das dificuldades do pequeno negócio. Dos clientes antigos, em que palavra dada, valia mais que letra de lei. Dos cadernos de fiados, com que ajudava muita gente. E dos outros. 

Dos mais novos, que lhe passam à porta com a maior indiferença. Que trazem da cidade, os produtos que ele também vende, alheios à sua generosidade de antanho para com os familiares dos que agora o ignoram e o não ajudam. E eu, revoltado e num impulso, manifestei-lhe por palavras doridas, uma solidariedade vã. Porque não passava de um jorrar de emoções atiradas ao vento, quase sem sentido, neste turbilhão de egoísmos e ingratidão, de uma sociedade sem memória. Esse drama, que já vai  corroendo o mundo campesino.

Naquele momento, também eu pressenti que estava no dobrar de uma página do Tempo. Que me encontrava sentimentalmente amarrado a uma esquina da Vida.
Quito Pereira          


12 comentários:

  1. Os Velhos
    Todos nasceram velhos — desconfio.
    Em casas mais velhas que a velhice,
    em ruas que existiram sempre — sempre
    assim como estão hoje
    e não deixarão nunca de estar:
    soturnas e paradas e indeléveis
    mesmo no desmoronar do Juízo Final.
    Os mais velhos têm 100, 200 anos
    e lá se perde a conta.
    Os mais novos dos novos,
    não menos de 50 — enorm'idade.
    Nenhum olha para mim.
    A velhice o proíbe. Quem autorizou
    existirem meninos neste largo municipal?
    Quem infrigiu a lei da eternidade
    que não permite recomeçar a vida?
    Ignoram-me. Não sou. Tenho vontade
    de ser também um velho desde sempre.
    Assim conversarão
    comigo sobre coisas
    seladas em cofre de subentendidos
    a conversa infindável de monossílabos, resmungos,
    tosse conclusiva.
    Nem me vêem passar. Não me dão confiança.
    Confiança! Confiança!
    Dádiva impensável
    nos semblantes fechados,
    nos felpudos redingotes,
    nos chapéus autoritários,
    nas barbas de milénios.
    Sigo, seco e só, atravessando
    a floresta de velhos.

    Carlos Drummond de Andrade, in 'Boitempo'
    // Consultar versos e eventuais rimas



    Carlos Drummond de Andrade Velhice

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    Respostas
    1. O teu texto suscitou-me este poema....
      Beijinho,Quito

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    2. Bem suscitado e bem lembrado.
      Carlos Drummond de Andrade, um dos meus poetas preferidos que já não leio há não sei quantas luas.
      É certo que não me tem apetecido virar muito para a poesia...
      Um beijinho, linda Olinda.

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  2. Obrigado Olinda, pelos versos de Drummond de Andrade. Muito do que tenho escrito ao longo destes anos - os contos de origem campesina - tiveram como origem e "inspiração" a aldeia de Freixial do Campo. É o caso deste, que agora partilho.É um texto do meu arquivo, elaborado há vários outonos já passados ...
    Abraço

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  3. Este texto é um jorrar de emoções atiradas ao vento, com todo o sentido para quem souber aproveitar esta partilha de sentimentos do Quito.
    Obrigado.
    Aquele abraço.

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  4. Um dos desafios na vida enfretados pelo indivíduo é o DESAPEGO. Nos apegamos às coisas materiais e sentimentais de tal maneira, que só a simples ameaça de pensamento em nos livrarmos deles, nos causa aflição.
    Aí, quando nos desapegamos... vamos perceber que nem doeu tanto, e que há mais tempo poderíamos ter praticado o ato, do desapego. No entanto, há um bem maior do qual não vale a pena desapegar: A experiência.
    Já que falaram em grandes nomes, como Drumond, cito o excelente compositor/cantor Lupicínio Rodrigues em "Esses moços":

    Esses moços, pobre moços
    Ah se soubessem o que eu sei
    Não amavam não passavam
    Aquilo que eu já passei

    Por meus olhos, por meus sonhos
    Por meu sangue, tudo enfim
    É que eu peço a esses moços
    Que acreditem em mim
    (...)

    Quito e Olinda, grata pela oportunidade de belos textos.

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  5. Pois é Quito!
    Calma aí!
    O teu pressentimento encaminha-te para o dobrar da página do tempo...
    Que pode estar no dobrar da esquina...
    Fazes-me vir à memória o fado da sina
    Será que faz sentido?
    Talvez sim, talvez não!
    Olha será o que a sorte quiser..
    Pelo menos a Hermínia assim o quis!...
    esperança perdida?

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  6. Um texto cheio de nostalgia, amargura e ao mesmo tempo, ternura!...
    Muito haverá para dizer, relacionado com este belo texto, mas tudo o que se disser é para relembrar a tristeza da desertificação da maioria das aldeias do nosso país!

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  7. Um belo texto pleno de tristeza mas muito profundo, como o Quito já nos habituou e que é notório nas aldeias mas que também se passa em muitas cidades. As pessoas vivem a pensar no passado e não aceitam o presente para fazerem face ao futuro, por muito curto que ele seja. Assim há muitos que nem saiem de casa durante meses. É uma vida triste pois as pessoas sofrem muito. O maior travamente, é a não aceitação da situação. Falta-me o xisto mas a companhia de uma bengala já tenho, estou rico. Procurei outros meios de me deslocar e de me ocupar, pois no meu tempo de bevolado aprendi muito com os "velhinhos" que na altura acompanhei. Foi uma grande lição. Jamais me esqueço de uma senhora com uma visão que não chegava a cinco por cento e que vivia tudo com muita alegria. Uma vez parados em frente da sua casa, caíu uma tromba de água. Como ela queria sentir a água porque não a via, saí do carro com ela e apanhamos um banho pois não tínhamos chapéu de chuva, parecía-mos uns pintos. A alegria dela, era contagiante. Até eu me admirava de estar contente. A vida não para. O ideal é ir criando projectos a curto prazo e assim passar os dias ocupados. Penso que vai muito da forma como cada um enfrenta a vida.

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  8. Pois, Quito, todos os dias viramos uma página, nos encontramos ao virar uma esquina pressentindo o que poderá estar para lá dela!
    Muitas vezes fazemos filmes dramáticos, outros nem tanto...
    Linda e poética a tua prosa!

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