quarta-feira, 11 de junho de 2014

LACRIMOSA ...




Hoje choveu. Uma chuva grossa, impiedosa, acompanhada de granizo, que embranqueceu as valetas dos caminhos. Lá longe, por cima das montanhas, já se adivinhava a borrasca. Nuvens negras, como novelos de lã escura, a passear o seu porte austero pela abóbada plúmbea e imensa. O mistério que se repete todos os anos, de uma primavera zangada.

Nada a que a aldeia não esteja habituada. A água que é necessária, a quem vive do sustento da terra. Desnecessário é o granizo, que trai o esforço de quem se dobra sobre um arado, a revolver a terra castanha da courela.

Mas neste mês de maio, não é a chuva que empapa os terrenos, o motivo das conversas no povoado. No balcão corrido do café da aldeia, entre cervejas e copos de vinho, todos falam do Garrido.

Morreu. Ainda ontem, pelas oito da noite, ali estava sentado naquele canto. Era sempre assim. Calado, cruzava os braços e ficava a olhar para a televisão, prisioneiro dos seus pensamentos.

Conheci-o bem. Trabalhava para a Junta de Freguesia. Guiava um pequeno triciclo motorizado encarnado, de caixa aberta, onde trazia todos os apetrechos para a limpeza das valetas e dos caminhos. Um homem simples que tinha mulher e filhos. 

Cumprimentava-me com cerimónia, sempre que se cruzava comigo. Fazia uma vénia e levava a mão ao boné, num cumprimento cordial e silencioso.

O Garrido, como alguns outros, era património da aldeia. Os caminhos que tratava com desvelo, estão mais pobres e há um vazio que dói. Falta mais uma peça, neste simples viver comunitário, em que cada um tem a sua tarefa distribuída.

Ontem, o aldeão deitou-se na cama e hoje não acordou. Morreu acompanhado do mesmo silêncio inquietante que o envolveu na existência.

Ao Mário, irmão do falecido, dei os meus sentimentos. Agradeceu, estendendo-me a mão calejada e a boca retorcida num esgar, falando-me conformado da inevitabilidade da morte. Afinal, a linear filosofia de pensamento que rege o mundo opaco dos deserdados da Vida.

Do Garrido, fica - me a imagem numa curva do caminho. No meu escritório, em Sua homenagem, vou ouvindo absorto, Amadeus Mozart e  “Lacrimosa”, no alinhamento da Missa de Defuntos. Um turbilhão de  vozes que nos transportam para lá da nossa fragilidade terrena  – o Requiem de Mozart. Escrito pela pena de uma mão erudita de inspiração Divina. Uma genialidade inacabada do Autor, cuja Morte implacável e egoísta, o reclamou para Si. Porém, outros o fizeram, num legado à Humanidade, transversal aos séculos.

Que o Manuel Garrido esteja em paz. A mesma paz com que conviveu com a Natureza, a quem sempre tratou com a cortesia do seu labor, durante os seus sessenta e nove anos da sua vida, que, por ironia do destino, completava no dia do seu passamento.
Quito Pereira     
   

7 comentários:

  1. Todos nós vamos passar pelo mesmo.
    O apagamento geral.

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  2. Um homem de nome Garrido, amante da natureza, amigo do Quito, teve um " passamento" como presente de aniversário!
    Onde quer que esteja, estará feliz com a lembrança do amigo que aqui escreveu sobre o seu viver.

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  3. A moldura do texto revela bem a tua amizade com as pessoas com quem te cruzas, no dia a dia, além da sombria tristeza da Morte de alguém.
    Um belo envolvimento afectivo perturbado pela morte de um amigo...
    A vida e morte sempre de mãos dadas.
    Beijinho,Quito

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  4. O que dizer de mais este excelente texto !
    A pretexto da morte do amigo Garrido,consegues manter-nos atentos à sua leitura, descrevendo como as condições atmosféricas, quando adversas podem ser presságio de acontecimentos menos bons.
    Desta vez pressentiram a morte de um filho da aldeia.
    Mais um que vai desfalcando a aldeia, seja no número de habitantes, quer seja dos que vão frequentando o balcão corrido da taberna, ou menos um que vai cuidando da limpeza das valetas...
    Pois, mas da lei da morte não há escapatória!
    Fica-te por algum tempo a imagem desse amigo, que a poderás recordar mais algumas vezes, enquanto vais ouvindo a tua música preferida!
    Um abraço!

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  5. E o Jornal do Fundão a perder estas tuas pérolas...

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  6. O Quito expõe-nos a morte do senhor Garrido como só ele sabe, pois envolve toda uma aldeia. No entanto, o senhor Garrido não deve ter sofrido muito ou até nem sofreu, pelo que foi feliz na sua despedida. Que descanse em Paz.

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  7. Vão-se os Garridos e vão-se alguns dos nossos amigos! Temos que encarar com alguma serenidade.
    Relembrá-los será a maior homenagem que lhe podemos prestar!

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