quarta-feira, 23 de abril de 2014

DESPEDIDA




Apenas sobrou  Chopin ...

Hoje, há um céu pintado de nuvens, para lá do Moradal. Nuvens brancas e fugidias, como pinceladas breves e anárquicas na abóbada imensa. Nesta calma de um Tempo ausente, deixo-me levar pela pena de Vergílio Ferreira e é na estação ferroviária de Évora, cidade onde aportou como professor do liceu, que me abraço às minhas memórias e ao trepidar monótono do rodado de um comboio, rumo à estação de Estremoz.

Convido-vos a sentarem-se a meu lado nesta velha composição, que geme o seu triste Destino de calcorrear as planícies do silêncio. São incómodos estes bancos de madeira, do pequeno compartimento que me limita a liberdade. Lá fora, olhando pela janela, há um vazio espacial e ao longe, no cimo de um cabeço, vislumbro um enorme sobreiro. Simples e só. Um monumento à solidão.

Que linda é a cidade, plantada no meio do nada, sob um céu azul imenso e avassalador de claridade. Que belas são as moradias, de traça simples e paredes alvas, como um véu de noiva a caminho do altar. No meio da urbe, um largo. No meio do largo as mulheres que, aninhadas debaixo das tendas e da sombra acolhedora, vendem artesanato de barro. Ali, naquela fiada corrida de casas brancas, o café mais conhecido da povoação secular.

O seu interior é sombrio. Um empregado, barricado atrás do balcão, vai espiando a rua, com um olhar ausente. O outro, move-se como uma sombra, deambulando por entre mesas redondas e cadeiras em madeira forradas a estofo verde de estrutura atarracada, onde se sentam clientes de ocasião. No teto, uma enorme ventoinha, cujas pás giratórias de um branco encardido, cortam o ar quente num ritmo cadenciado e um som cavo que se sobrepõe a um silêncio inquietante.

Apenas ao fim da tarde, o negócio tem algum movimento e o aroma do café de máquina, entrelaça-se com as conversas em surdina dos seus frequentadores. Muitos deles, usam farda. São militares, que habitam o quartel da cidade.

O Regimento de Cavalaria, que já foi convento, é uma bisarma no meio do aglomerado urbano. Tem uma porta de armas que dá acesso a um pátio escuro. Cá fora, um soldado de sentinela, vai resguardando a tez morena, na guarita inestética e cinzenta, protegendo-se do sol generoso que banha a campina.

Da planície e das ruas estreitas e singelas, trepamos ao morro. Lá em cima, alargamos a vista numa paisagem sem fim. Somos passageiros errantes de uma barca de utopia, como quem navega em vagas ondulantes de calor, que nos limita um horizonte de fogo.  
Apenas as azinheiras e os sobreirais, de novo nos transportam para a realidade alentejana. Entramos, expectantes, na Estalagem de Rainha Santa Isabel. Lá dentro, tudo é austero e requintado. Desde as paredes vetustas, às tapeçarias, louças e mobiliário pesado de grande beleza. Ao fundo de um corredor, desaguamos numa sala ampla, com vista para a cidade. À esquerda, um pequeno bar. No meio do salão, um piano de cauda. Um piano negro, majestoso na harmonia delicada das suas linhas.    

Por minutos, vou olhando absorto Estremoz, ali derramada a meus pés, com o seu casario de telhados solidários, como quem se junta para se defender da canícula.

Saio da minha letargia e reparo que, silencioso, em passos macios e lentos, um homem elegante, vestido de preto, sapato de verniz luzidio e laço a roçar o queixo magro, aproxima-se e senta-se ao piano. Por momentos, olha as mãos, pensativo.

Depois fixa os olhos no teto e, levemente, os seus dedos esguios correm devagar ao longo do teclado branco e negro, como quem pega, delicadamente, numa peça rara de cristal.

Interiorizo que o espírito de Chopin, tomou conta da sala. Fecho os olhos e percorro os labirintos da alma. Entrego-me aos mistérios ancestrais da Música. Faço uma trégua com as tempestades que me diabolizam o pensamento, porque me sinto longe de casa e só. É uma melodia doce ao ouvido e ao mesmo tempo envolvente e soturna. Deixo-me levar nas asas do virtuosismo do pianista e recordo Amélia e Afonso.

Relembro, na poeira das décadas, um amor em tempo de guerra. Neste revisitar do passado, foi naquela mesma sala, ouvindo o compositor polaco, que os olhos negros e inquietos de Amélia, se cruzaram com o semblante calmo do Afonso, meu camarada de armas. Apaixonaram-se e o fogo do seu ardor arrebatado, alastrou pelo quartel, quando todos comentavam o romance fulminante.

Alguns, diziam que seria sol de pouca dura. Outros, vaticinavam que nem a longínqua África, o nosso destino, adormeceria tão escaldante sentimento dos amantes.

Numa noite, partimos. Provámos, todos, o sabor a fel da despedida. Também Amélia e Afonso, sofreram o tormento da separação, com promessas de reencontro e juras de amor.

Madrugada escura, deixámos o chão alentejano, em direção ao cais de embarque, na capital. Afonso, da janela da camioneta militar, olhava Amélia com um sorriso pardo, de quem tentava resistir à emoção daquele momento e aos fantasmas da guerra.

Os que, por mau presságio, disseram que aquela era uma paixão sem rumo e sem futuro, venceram. Perdeu Cupido, na fogueira de vidas desencontradas.

Mas eu, que tenho um pacto de silêncio com as planícies sem fim, que percorri numa determinada época da minha vida, prefiro que a desilusão de Amélia termine aqui, vitima daquela paixão fugaz.

Daquele amor, apenas sobrou Chopin. E talvez um Noturno, a lembrar aquela madrugada triste da despedida.
Quito Pereira        

26 comentários:

  1. Uma prosa/poema que me enterneceu muito que como Amélia também sentiu a despedida e final idênticos...
    Fiquei insensível a Chopin e mais ainda a Nocturno....
    Vergílio Ferreiro passou a ser o meu adorado e devorava a sua leitura em tons de perda como sublimando a minha desventura.
    A saudade permanece mas "o luto" foi cumprido como melhor entendi e as pazes com Chopin foram feitas, escutando deliciada as suas músicas incluindo Nocturno.
    Obrigada,Quito.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Olinda, pelo teor do texto, pensei que ficasse "branco" de qualquer opinião. Enganei-me. Num comentário abaixo, agradeço a tua presença.
      Abraço

      Eliminar
  2. Coisa com muita elevação.
    Assunto.

    ResponderEliminar
  3. Respigado da NET:

    " Cada Noturno é uma peça independente e tem uma tonalidade específica" ...

    " Nada é mais lindo e bem feito que os Noturnos de Chopin, que são em número de 21 - 19 editados e 2 póstumos" ...

    Gostei do teu comentário, Olinda. Obrigado pela partilha.

    ResponderEliminar
  4. Li e reli o teu texto e portanto acedi ao teu convite de me assentar a teu lado na velha composição que partindo de Évora seguiu até Estremoz!
    Apreciei a descrição sobra a cidade de Évora, entrei no café, que pelo que descreves é bem sombrio e com pouco movimento!
    Apreciei o momento em que introduziste o piano e o artista que executou Chopim, para introduzir de forma brilhante o tema principal deste teu texto.A Amélia( dos olhos doces...), o entre parentsis é meu, e o Afonso.
    A partir daqui o final era previsivel....a partida, o embarque e desse amor sobrou Chopin...
    Um abraço!

    ResponderEliminar
  5. Rafael, a cidade é Estremoz e a sua Estalagem de Rainha Santa Isabel, que ali viveu em determinada altura da Sua vida e faleceu. Muito mais tarde, foi transladada para Coimbra. De Évora, a referência a ao livro "Aparição" de Vergílio Ferreira e a sua chegada à estação de Évora.´´E assim que começa o romance atrás mencionado.

    Um abraço

    ResponderEliminar
  6. Um texto lindo, como sempre. Consegues emocionar-me e deixas-me sem palavras. Tenho saudades tuas

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Saudades, sim, minha amiga. Não é impune, uma amizade de tantos anos...
      Abraço

      Eliminar
  7. Maravilha de texto, Quito. Como não posso agradecer-te pondo aqui todo o CD triplo «Chopin: The Nocturnes», obra prima da Maria João Pires, deixo o Nocturno Nº 1

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Obrigado, Paulo. Vou ouvir a tua partilha, Noturno nº 1.
      Abraço

      Eliminar
  8. Mais uma bela prosa. Gostei...abraço caro amigo Quito.

    ResponderEliminar
  9. Curiosamente, eu e a Daisy, este fim de semana, fotografámos a estátua da Rainha Santa Isabel em Estremoz.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Desejo - vos uma boa estadia pelo Alentejo. De Estremoz, as memórias não serão as melhores, por motivos óbvios. Mas gosto do Alentejo. Monsaraz é visita obrigatória
      Abraço

      Eliminar
  10. maria helena morgadoabril 24, 2014 9:29 da tarde

    Como diria o Tonito, «Digno de menção honrosa»!
    Parabéns, Quito

    ResponderEliminar
  11. Sempre o Quito nos presenteia com os seus textos maravilhosos e vindos de um coração cheio de amor e ternura. Adorei e senti-me em Évora onde estive 2 anos a trabalhar e onde gostei de viver. Também senti o desespero de Amélia e a tristeza sem futuro do Afonso que, tendo na sua mente e no seu rosto molhado pelas lágrimas do medo que lhe ensombrava o coração, lhe assaltava a pergunta - será que alguma vez voltarei para Évora ou para os braços de minha amada Amélia? Foi assim, durante muitos anos, para muitas Amélias e muitos Afonsos e sem qualquer fim "gratificante". Nada disso valeu a pena mas realmente ficaram Chopin e os seus Noturnos para nos deliciar.
    Obrigada e muito obrigada. Um bom fim de semana

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Amiga Lekas, o palco desta história de que fui testemunha, é Estremoz. De lá parti com o meu batalhão. Afonso era meu camarada de armas. Évora, foi apenas o mote para o começo do texto, com uma alusão ao escritor Vergílio Ferreira e ao romance "Aparição" com a sua chegada à cidade de que tens boas recordações. Foi daí que parti para as minhas memórias alentejanas, num momento difícil da minha juventude e do nosso país.

      Um abraço para ti e Manuel

      Eliminar
    2. Lekas somos dois amantes de Évora. O mote traí-nos

      Eliminar
    3. Em Évora, consta que se come bem no"Fialho". Perco-me por uma comidinha alentejana. Umas migas ( cá chama-se açorda) com coentros, tira-me do sério. A acompanhar com um bom tinto lá do sitio ...

      Eliminar
    4. Estais como eu.
      Tenho tios que vivem em Évora e que me aconselharam, há alguns anos, o «restaurante Xico», em S. Manços (a poucos km de Évora). Experimentei e fiquei fã. Que maravilha de empadas... e os alentejanos até de cardos fazem uma sopa deliciosa. A cozinha da necessidade...

      Eliminar
  12. Viajei com o amigo Quito, mas sentada no meu sofá, bem mais cómodo que os bancos de madeira da composição vagarosa.
    Ouvi Chopin, revi Vergílio Ferreira e lamentei o desfecho dos amores da Amélia e do Afonso!
    Bem hajas por mais uns bons momentos de leitura.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Obrigado pela colaboração, amiga Celeste. E obrigado pelas palavras ...
      Abraço

      Eliminar
  13. Magnifico texto Quito! So que "a minha Amàlia" nao so esperou por mim 4 anos como também me escrevia todos os dias (digo bem, todos os dias) para ANGOLA!!!Na nossa historia de amor o tema "LET IT BE" dos BEATLES substituiu e bem o CHOPIN!
    Mas as despedidas foram sempre muito dolorosas!

    ResponderEliminar