quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

ENCONTRO COM A ARTE

CONTOS
da
DAISY
             ________________________________________________________________




O homem imponente desceu do grande automóvel preto, enquanto o motorista fardado lhe abria a porta e, com a outra mão, levantava o boné respeitosamente. Dirigiu-se para o edifício envidraçado, onde outro homem-de-boné-na-mão o cumprimentou. Sempre direito, sempre sem desviar o olhar de um ponto que prèviamente devia ter marcado, continuou a passar portas e portinhas com a vénia dos inevitáveis inferiores-de-boné-na-mão.
— Senhor Administrador…
O Senhor Administrador chegou por fim, ao seu gabinete particular, onde o aguardavam milhentos papéis com milhentos problemas. Fechou-se a porta sobre o último homem-de-boné-na-mão.
Carregou num dos botões do quadrado colocado numa das pontas da secretária.
— Durante meia hora, não quero que me interrompa!
Tirou o dedo da bolinha colorida. NÃO QUERIA que o incomodassem. Tinha meia hora para si, e NÃO QUERIA qualquer interrupção. O Senhor Administrador podia dar-se ao luxo de NÃO QUERER ou de QUERER. Podia exigi-lo. Ordená-lo. Mas o que é que ele queria ou não queria na realidade?
Despiu o sobretudo, acendeu um charuto. (Quando fumara o seu primeiro cigarro? E o último?) e refastelou-se na cadeira-de-braços de coiro preto. Meia hora eram trinta minutos, eram mil e oitocentos segundos. Tinha ele o direito de "roubar" mil e oitocentos segundos aos seus accionistas? E quantos segundos, quantos minutos, horas dias, meses, quantos anos não lhe haviam "roubado" eles?
A mulher de "carne de xaile", como diz o poeta, levantou a mão e castigou o menino. E o menino virou para os outros e para a mãe também, os olhos grandes numa pergunta mesquinha de "porquê?". Mas a pergunta foi-lhe devolvida, sem resposta. E cada vez que faltava o pão, cada vez que o menino dizia "tenho fome", a mãe de carne de xaile levantava a mão, nem ela sabia porquê; o gesto estava-lhe de tal modo condicionado, no inconsciente, com a frase dita, como xaile lhe estava gravado na carne, mesmo depois de deixar de usá-lo. E o menino calava-se. E o menino não chorava; guardava para si todas as palavras berradas que desejava dizer. Arrecadou-as todas, bem lá no fundo, e foi enchendo, enchendo. Era um saco sem fundo; era um menino e não compreendia bem quando já chegava. Só quando cresceu, se deu conta de que o seu saco já estava muito cheio; já não cabia mais nada. Era altura de o esvaziar. Era altura de, pelo menos, parar de "enchê-lo". Disse adeus à mulher com o xaile gravado na carne, com um gesto de bater gravado no inconsciente. Mas muitas mulheres que encontrou, muitos homens com quem lidou, tinham também o xaile gravado na carne, como as chicotadas de prisioneiros de guerra nos campos-de-concentração… E o saco não se esvaziava. O mundo é um grande saco cheio de injustiças, composto pelos sacos de cada um dos homens. Parecia-lhe, a princípio, que todos desejariam acabar com elas, com as injustiças. Pareciam-lhe que devia ser o fim belo do Homem, fazê-las desaparecer. Parecia-lhe. Agora, que, em parte, podia contribuir para o seu desaparecimento…
— Senhor Administrador…
A voz saiu, defeituosa, do pequeno quadrado situado numa das pontas da secretária, cheio de botõezinhos. Tinha passado meia hora, tinham passado trinta minutos. Mil e oitocentos segundos… Alguém queria ser recebido. Algum problema necessitava resolução. E nada se fazia sem ele, sem o Senhor Administrador.
Levantou-se da cadeira de coiro preto. Carregou num dos botões coloridos.
—     Sim menina…
— É a mulher que insiste em falar-lhe. quer um empréstimo para que o filho possa emigrar. Mas não tem qualquer fiança. Já lhe disse que não há nenhuma possibilidade. Estou farta de aguentar… Não queria incomodá-lo, mas as suas lamentações têm perturbado todo o serviço… O que faço, Senhor Administrador?
Era, provàvelmente uma mulher de carne de xaile que queria libertar-se das marcas dolorosas. Era uma mulher que desejava, também, fazer-lhe desaparecer os vincos que lhe doíam ainda e esvaziar-lhe, um pouco, o seu próprio saco.
— Eu recebo-a, menina. Eu trato do assunto. Faça-a entrar e, quando ela sair, venha ao meu gabinete!
Eram dezassete horas e o Senhor Administrador dava por findo o seu dia de trabalho. Eram cinco horas da tarde, e o homem, mais homem, menos Senhor Administrador, sorriu para o motorista, de boné na mão, como sorria aos outros inevitáveis inferiores-de-boné-na-mão por que passara até chegar ao que lidava mais directamente com ele. Eram cinco horas, e havia um homem que descobrira um mundo onde era possível mais do que o trabalho de lidar com firmas impessoais, com papeis que não diziam nada do que se passava à sua volta. Faltavam duas horas para um operário largar a sua obra. Faltavam duas horas para um homem saber que a sua vida podia, ainda, receber um impulso que lhe poderia fazer ganhar mais dinheiro para sustentar, em condições próprias, a sua família.
Eram cinco horas e o ar estava menos pesado.


8 de Junho de 1972


5 comentários:

  1. A Daisy, sabe alinhar as palavras. A sua escrita é um novelo, que o leitor vai desfiando num enredo de palavras simples, mas profundas.

    Mais de quarenta anos passaram sobre este prosar, inserido num livro de contos. Volta agora à ribalta pela mão do EG e do seu administrador que, em boa hora, vai desfolhando as páginas deste livro da escritora. Afinal, o dar corpo a um sábio pensamento de alguém que disse um dia : "um livro, fechado ou aberto, é sempre um amigo que sabe esperar" ...
    Um abraço, Daisy

    ResponderEliminar
  2. A verdadeira realidade contada com a conhecida qualidade da nossa amiga Daisy...
    Religou-me ao meu já antiquíssimo local de trabalho,nas décadas de 60 e 70,a ESTACO.
    E não é que era tal e qual como nos é relatado com a emoção da Daisy.
    Emoção que também sentia e voltou essa emoção.
    Tanta sensibilidade nesta escrita por ser a verdadeira realidade de então e que sentimos de novo actualmente...

    ResponderEliminar
  3. Li com muita atenção este conto da Daisy. É dos melhores que li e já publiquei.
    Gostei muito
    Um beijinho Daisy!

    ResponderEliminar
  4. Por muito que raleie este texto, ficam-me sempre dúvidas quanto à intenção última da Autora.Penso que intencionalmente, dá-nos mais do que um caminho para a meta final. Pode-se dizer que deixa o enredo em aberto, tal como muitos autores utilizam esta figura "em aberto" para deixar ao leitor espaço para ele próprio utilizar a sua imaginação e fazer o "seu" final, tirar as "suas" conclusões.
    Não é um texto fácil, nesta medida. Não deixa de ser, contudo e como sempre, uma delicia na fluidez da escrita e do romantismo social com que nos brinda.
    Obrigado Daisy, um beijinho muito grande.

    ResponderEliminar
  5. Obrigada, Daisy, por esta deliciosa leitura de um texto tão real e, em simultâneo, tão poético!

    ResponderEliminar