terça-feira, 17 de setembro de 2013

NO OCASO DO TEMPO ...


 
 
De novo, regresso. Do bulício febril da cidade Coimbrã ao ocaso do Tempo, são pouco mais de duas horas de viagem. Guio embrenhado nos meus pensamentos. Lá ao longe, muito ao longe, já diviso a cripta da Serra da Estrela. Agora que a neve partiu, ficou ainda uma alva cabeleira rala, que se derrama timidamente pela encosta. É a agonia da Primavera. Farrapos de nuvens brancas como algodão, passeiam lentamente por cima do Moradal. Percorro agora a estrada que me leva ao povoado da Lameirinha. Saio do carro e há um silêncio que é um mistério. Um silêncio que me sufoca e me perturba.

Dentro do Café, há poucos sorrisos. A vida leva-se a sério. Desde cedo que a labuta nas courelas que oferece o pão lhes endureceu as faces. Uma máscara de sofrimento. Não aprenderam a sorrir. É quase um sacrilégio. Guardam os sorrisos contidos apenas para as épocas festivas, quando a concertina se passeia pela aldeia e o Santo é levado num pequeno andor a percorrer o palco da vida de muitos para quem o rendilhado austero do cume das montanhas, é o limite dos sonhos. Para lá das serras, não existe nada. Só vagas quimeras. Do lado de cá das montanhas, apenas o sabor acre da solidão.
Almoço só, numa mesa encostada a um canto da sala. Na vidraça da janela, uma mosca voa batendo furiosamente contra o vidro, numa ânsia de liberdade. É um zunido irritante que me acompanha durante a refeição.
Vou comendo sem pressa, olhando a sala onde se sentam um dúzia de clientes que sorvem a sopa de cabeça curvada sobre o prato, como quem cumpre uma penitência.

Reparo agora numa cartolina colocada em destaque sobre a minha mesa. Em letras negras e cheias, tem a palavra “Reservado”. O David, sempre que pressente a minha presença, entende dar-me um lugar especial. Ele sabe que eu gosto daquela mesa para a refeição. E tem o cuidado de a guardar. Por detrás do seu rosto de menino, há um coração bondoso. E ele, que é arguto, também sabe quanto o estimo, pela sua educação e lição de vida.

O preço da refeição é por estimativa. Diz-me:
- Bem, hoje são seis euros …

- Só?! … mas comi sopa, favas, pão, sobremesa e vinho …

- Seis euros, chega …
- Bem, toma lá sete euros. O euro a mais é para a corda do sino …

Depois parto. Dois quilómetros à frente, sou tragado por uma floresta de pinheiros. De novo o silêncio. De novo o mistério de uma aragem branda que dança escondida por entre a copa das árvores. Parado na berma da estrada, olho a povoação de Salgueiro do Campo ao longe, encarrapitada na crista de um monte e espraiando o seu alvo casario pela encosta, plena de uma luminosidade clamorosa. Percebo agora que não estou só. Ali ao lado, junto ao tronco de um pinheiro, um lagarto de mil cores, de cabeça erguida, olha-me num misto de curiosidade e angústia, na incerteza de que a fera humana lhe possa fazer mal. Mas poderá estar descansado, neste palco de ninguém em que ambos somos protagonistas. Ele, poderá a usufruir livremente do seu habitat natural. E eu, temo que ali, no ocaso do Tempo, cheguei ao apeadeiro da vida.
Quito Pereira                 

22 comentários:

  1. Sempre em permanência, ora em Coimbra ora em Salgueiro do Campo,considero-te um previligeado pois a observação e o contacto com duas realidades vivências também elas diferentes.
    Então é um prazer ler as tuas reflexões sobre o que te circunda quer em relação às pessoas quer ao habitat sem que consiga deslumbrar qual a a mais aprazível para ti...
    Suponho que ambas já que a tua forma de estar e sentir capta afectivamente ambas.
    Mas eu fico mais encantada com as pessoas,o relacionamento entre elas,o quotidiano da vida daí quando os descreves com tanto carinho.
    Claro,agora apenas vivo o dia a dia citadino e enquadrada no BNM mas "permites-me" regressar às minhas origens...
    Ambos tèm as suas vantagens e inconvenientes mas a VIDA é isto!

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    1. Está correcto :) Ou será correto ?? :S

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    2. No novo acordo, acho que é correto. Beijo filhote ...

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    3. Apesar do erro e distracção, como vislumbrar,espero que o meu comentário ao teu texto tenha alguma conexão.Ou seja que a minha leitura tenha coerência...
      Sei que é minha perspectiva mas que tenha algum cabimento para ti,Quito e para todos.
      Às vezes já me questiono se já não estarei "xé-xé"!!!
      Beijinho

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    4. Olinda, neste caso como noutros, tenho reparado na desenvoltura da tua escrita e argumentos. Não são erros, são lapsos. Todos temos e, por vezes, ficamos a matutar como se escreve determinada palavra. Para mim, importante é sentir-vos desse lado. A deslumbrar ou a vislumbrar ...
      Toma lá um abraço

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    5. Reconhecida pela tua apreciação e delicadeza.
      Mesmo sem capacidade para escrever sempre te incentivei bem como ao Rui Felício e a outros que também sabem ( mas se esquivam)a dar-nos estes pedaços literários excelentes.
      Com as partilhas dos vossos textos, com os bons comentários e os menos bons, todos beficiamos em cultura e em solidificação da Amizade.
      A competição não é o nosso lema.
      Toma lá um abraço

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  2. Como sempre, mais conto interessante do Quito,que me faz recordar alguns momentos da minha vida.
    Um belo dia de Primavera, no regresso de uma visita de trabalho, a Loriga,na zona de Valezim,vejo na estrada um lagarto estendido ao sol, muito bonito.
    Vi a posição dele e desviei-me, muito devagarinho, para não o atropelar. Pensei que assim evitaria ser esmagado! Mas não, uns metros adiante vejo pelo retrovisor que não foi esmagado, mas dava cambalhotas na estrada, sinal de que ainda lhe toquei. Não sei se morreu mas tive pena de o ver assim!
    Isto tem a ver apenas com o lagarto do Quito que era mais inteligente e não se meteu em aventuras de ir para a estrada!

    mariorovira

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    1. Sabes Mário, atropelar um animal na estrada, por mais insignificante que seja, deixa-me doente. Infelizmente já me aconteceu ...
      Um abraço e obrigado pela tua presença ...

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    2. Mesmo mosquitos?! Estás tramado!...
      (grande texto!)

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  3. Olinda, é privilegiado, segundo o dicionário Priberan ...

    Já agora, também a tua frase " sem que consiga deslumbrar qual a mais aprazível" ...penso que será vislumbrar e não deslumbrar ...neste caso a palavra parece-me deslocada no contexto por ti pretendido ...
    VISLUMBRAR - Ver, entrever, lobrigar ...
    Mas confirma ...
    Abraço

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    1. Tem piada que o tradutor do google diz-me priviligiado :D

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    2. Pois. Privilégio, dizem ...e agora ?

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  4. Pois Quito desta vez além de apreciar o teu texto, ainda tenho umas aulas de bem escrever!Vislumbro que é um privilégio (para mim correcto),(correto para os "acordistas), deliciar-me com estes teus textos!
    Sim comer uma refeição por 6€ em mesa reservada é mesmo um privilégio!
    Mas não te deslumbres com estes preços de amigo...porque quando almoças aqui aos domingos, vislumbras melhor a realidade!
    O Sporting agradece o carinho que tiveste pelo lagarto! Sobrevivem o teu e o de Lisboa!
    Um abraço!

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    1. Rafa, não metas bola nisto, que eu ando um bocado irritado com os nossos ..
      Abraço

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  5. O Quito mesmo com contos muito simples e próprios do dia a dia, consegue-nos com a sua forma de expôr manter-nos presos ao que escreveu. Além disso junta-lhe um animalzinho "chamado" largato de mil côres, que o trata com uma humanidade fantástica. Enfim... uma pessoa é condenada a ler tudo.

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    1. Sempre a tua cordialidade, Chico ...
      Um abraço

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    2. Não se trata de cordialidade mas sim de admiração pela forma como escreves.
      Um abraço.

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  6. O apeadeiro do tempo a que o Quito se refere, está ilustrado de forma sublime, pela imagem da serra que se despede paulatinamente da neve que ciclicamente em cada ano a embeleza:
    “Agora que a neve partiu, ficou ainda uma alva cabeleira rala, que se derrama timidamente pela encosta”

    E a dureza da vida de quem quase não sabe sorrir, ilustra-a com uma imagem angustiante e triste dos comensais que o acompanham na sala do restaurante:
    “...sorvem a sopa de cabeça curvada sobre o prato, como quem cumpre uma penitência”

    Escrever assim, ilustrando com imagens as palavras que alinha no papel, é mais do que uma crónica de viagem. É um quadro de pintura que nos desperta os sentidos e os sentimentos de quem vê uma obra de arte.

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    1. Tu Rui, que gostas de alinhar as palavras e as ideias, sabes como ninguém, como é importante para quem se expõe sentir uma palavra amiga de incentivo.
      Obra de arte? Como sempre a amizade falou por ti ...
      Um abraço

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    2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  7. Sim, Quito, a tua escrita é fina pintura, aguarela desenhada com pena de artista!

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