terça-feira, 24 de setembro de 2013

ENCONTRO COM A ARTE


  CONTOS
  da
  Daisy
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Toda a gente tem uma história. E a dele, dizia, era curta. Costumava contá-la assim:
— Nasci, vivi, morri.
Era assim que ele a contava. Mas para lá daquelas três palavras, escondia-se a verdadeira razão por que tudo lhe era indiferente, por que se considerava morto. E não queria recordá-la. Quando o inconsciente lhe mostrava o menino a correr pelos campos em flor, ofuscava a imagem com o véu que o álcool lhe fazia erguer ante os olhos da alma. E não via. Melhor, fingia não ver, porque, na realidade, todos os dias, como um pesadelo, aquelas e outras das cenas da sua vida lhe passavam no espírito como num "écran".
— Nasci…
O menino corria, corria pisando os malmequeres silvestres, na relva do lameiro. O perdigueiro seguia-o e adentanhava-lhe os calcanhares, a brincar.
O menino era feliz.
— Vivi…
A tia velha pegou na carta e rasgou-a, zangada. O rapaz via e chorava por dentro.
— "Quando eu for maior…"
— Vivi…
O rosto da rapariga brilhava, havia algo nela de irreal. Brincava, gaiteira, com os sentimentos dele que lhe confessava, inocentemente, que a amava. A rapariga brincava… A tia velha gritava…
O rapaz "maior" ouvia a tia velha gritar. Que gritasse. Mas a tia velha sabia. A tia velha, porque era velha, sabia tudo. E, como amiga que era, gritava. Mas o rapaz "maior" não era velho… Que gritasse. E ela gritava. E ela gritava sempre.
A rapariga-que-tinha-algo-de-irreal, brincava. E o rapaz, que já não era rapaz, que era homem, não brincava e sabia o que queria. Mas a rapariga brincava… e ria, e moçava.
Moçou sempre, na mesma proporção, em que a tia velha gritava.
E o rapaz-homem cansou-se. E abandonou a repariga-do-rosto-que-brilhava.
A tia velha já não gritava.
Veio outra rapariga, e outra, e outra, mas nenhuma delas tinha o rosto-que-brilhava, nenhuma delas tinha algo-de-irreal. E o rapaz-homem cansou-se novamente.
— Vivi…
Procurou outra vez a rapariga-de-rosto-que-brilhava. E a tia-velha voltou a gritar. E o menino-rapaz-homem começou também a gritar… com a tia velha. E a tia velha calou-se. Nunca mais gritou… Mas a rapariga-que-tinha-algo-de-irreal, continuava a troçar, a troçar. A rapariga-do-rosto-que-brilhava, por fim, parou de rir, e disse-lhe francamente:
— Detesto-te.
E o rapaz-homem, que já tinha sido menino, quis voltar a sê-lo, quis correr pelos campos em flor, com o perdigueiro atrás… Mas não pôde, continuou a viver porque… veio outra rapariga, e outra, e outra…
— Morri…

                                                                                                4 de Setembro de 1969 

4 comentários:

  1. Leio sempre com interesse os contos da Daisy. Este, não foge à regra.Ler é viver quando, muitas vezes, encarnamos o personagem. Quando vestimos a pele da esperança e do desencanto.
    "Na relva do lameiro", não trai as origens da médica - escritora. "A rapariga moçava e moçou sempre". Será regionalismo ? Honestamente, não sei. Mas sei da bondade do termo, que muito tem a ver com a faceta doce e humanista de quem alinha bem as palavras, neste caso em três vértices distintos, neste triângulo em que se resume a vida, ainda que em sentido figurado: nascer viver e morrer. Morreu o texto? Não morreu. Porque textos desta qualidade não morrem.
    Abraço Daisy

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  2. Mais um belo conto da Daisy e que tenho o privilégio de publicar!

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  3. Amar alguém e não ser correspondido é um golpe profundo que custa a cicratizar.
    Mas é a lei da vida, a que todos estão sujeitos e que, com maior ou menor dor acabam por encontrar o antidoto, se essa falta de sintonia for simplesmente indiferença.
    E, quando assim é, sarada a ferida, a vida é retomada e continuará.

    Casos há, porém, em que a troça, a galhofa e, finalmente a rudeza e a clareza agridem o ser apaixonado, rindo do seu sofrimento e da pureza do seu sentimento.
    Foi isso que fez a gaiteira rapariga-do-rosto-que-brilhava.
    Arremessando-lhe como uma pedra, depois de longo tempo, a escusada frase “ Detesto-te! ”.

    E a ferida não cicratizou.
    E a vida do apaixonado parou.
    E o apaixonado, vegetou.
    Aparentemente vivo, ele de facto morreu.

    Dizer isto é fácil. Especialmente por quem, como eu, já está no ocaso da vida.
    O que não é fácil é dizê-lo da maneira poética com a Daisy o disse, ainda na flor da sua juventude.

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