sexta-feira, 27 de setembro de 2013

«A gabardina do Abílio» - Carlos Viana

"O dia nasce. Mais um que eu vejo nascer.
Chove, aguaceiros vão caindo intermitentemente. Que importa? Não é por isso que deixa de ser apenas mais um dia.
Mas não é apenas mais um dia, é o dia em me irei despedir fisicamente de ti. Daqui por poucas horas, a meio desde dia que agora começa, direi adeus ao teu corpo que se vai transformar em cinzas.
Durante as últimas horas, muitos dos bons e maus momentos que ambos vivemos vão desfiando, recolhidos daquela memória que já nem nos lembrávamos que temos,
E, talvez pela chuva que vai caindo, lembrei-me da história de uma gabardina. Será que ainda te lembras? Creio bem que sim pois sempre tiveste memória privilegiada.
Ficarás talvez incrédulo se eu te disser que a gabardina ainda existe. Acreditas? E mais incrédulo ficarás se eu te disser que se encontra em bom estado e que tenciono levá-la comigo até junto de ti. Há largos anos que não a uso e suponho que não estará na moda mas sabes bem como eu sou quanto a modas...
Até já, meu querido amigo.

Como muitas vezes acontecia, O Abílio e a Zeca vieram passar o serão a nossa casa. Como sempre, o Abílio reclamou que estavam a repetir a visita sem que, no entretanto, ela tivesse sido retribuída por nós e jurava a pés juntos que não voltariam a aparecer cá por casa enquanto tal não acontecesse. Eu lá me ia desculpando conforme podia, a Olga dava razão ao Abílio e acusava-me de ser preguiçoso, a Zeca punha água na fervura na acesa discussão e lá fazíamos o nosso serão que acabava sempre com a Olga e a Zeca a reclamar a hora tardia a que nos íamos deitar porque no dia seguinte era dia de trabalho e havia que levantar cedo.
Nessa noite de inverno o Abílio apareceu com uma gabardina nova, acabadinha de comprar nessa mesma tarde.
A Zeca estava «contra» a gabardina. "Este homem quando compra alguma coisa sozinho só faz asneiras! Vocês já viram? Cabem lá dois «Abílios», parece um doidinho com esta porcaria vestida." A Olga opinou que de facto o raio da gabardina era muito grande. Eu ria-me com a situação e também ajudei. "Olha pá, ou é gabardina a mais ou Abílio a menos... Pareces um gajo da Gestapo..."
Com ar triste e desconsolado o Abílio lá dependurou a causadora da sua tristeza no bengaleiro e fomos para a nossa amena cavaqueira.
Chegada a hora do chá - chá para eles, cerveja para mim - a Olga abriu duas pequenas mesas de apoio que tinha adquirido tão recentemente que os nossos amigos ainda não conheciam. Ambos acharam as mesinhas muito simpáticas e úteis para aquele efeito. "Quanto custaram?" quis saber o Abílio. "Olha foi o mesmo que me custou a merda da gabardina!"
O que ele foi dizer! A Zeca retomou a carga crítica pela compra efectuada. A Olga achou que não tinha sido cara dada a qualidade e o corte moderno, que sim que estava na moda e até era bonita. Claro que aproveitou para me acusar, a mim pois claro, de desleixado, indiferente às modas, que sim senhor a gabardina do Abílio era de bom gosto só era pena ser muito grande.
Saí da sala e fui vestir a abandonada e tão criticada gabardina para ver se me servia.
Que nem uma luva! Foi a opinião geral.
O resto é fácil de adivinhar, o Abílio, com o seu rápido raciocínio e sentido prático logo tratou de propor um negócio que foi aceite a contento de todas as partes envolvidas...

Nota: Parou de chover mas, ainda assim, vou vestir a gabardina."

Carlos Viana

23 comentários:

  1. Que lindo, meu sogro, fiquei de olhos húmidos.
    Já lhe disse que o amo, hoje???

    Fernando Franco

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  2. Desculpa o abuso de ter publicado os teus comentários como post, Carlos Viana. Mas achei uma pena ficarem "escondidos"... e uma excelente homenagem ao nosso Abilito (e a todos os seus/nossos amigos).

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  3. Também acho que foi uma bela homenagem ao nosso querido Abílio, gostei muito dos textos postados, obrigado Carlos porque os escreveste e à São Rosas por os ter publicado.
    Ana Maria.

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  4. Coisas, que só tu sentes, Carlos! E como são apreciados esses sentimentos...bem- hajas, por teres levado a gabardina. Beijões.

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  5. Ontem e hoje, foram dias emotivos. Não esqueço a cara de tragédia da nossa querida amiga Zeca. Nós, os amigos, muitos deles, lá fomos em cortejo até à Figueira da Foz, despedir-mo-nos do nosso Abílio. Nada que não tivessemos feito já antes com a amiga Gina Faustino.

    Em boa hora, o amigo Carlos Viana apareceu a homenagear o Abílio. Uma história jocosa, afinal uma forma de lembrar o nosso falecido amigo como ele gostaria.

    No funeral, o Carlos Viana lá estava, de gabardina vestida. Uma atitude que revela a sua vertente afetiva. Talvez por isso, por estes exemplos, me sinto tão confortável com este grupo de amigos.

    Obrigado, Carlos Viana.

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  6. Aquela gabardina, hoje, no funeral do Abílio, a destoar do padrão em uso, trazia água no bico.
    Agora percebi que escolheste prestar-lhe, assim, uma derradeira homenagem.
    Bonito. Foste Tu próprio.
    Pedro Martins

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  7. Carlos, juro que me admirei de te ver tão bem vestido! E não te importes que não esteja na moda, não está hoje mas há-de voltar a estar com toda a certeza. O Abílio teria gostado de saber que a sua gabardina ainda resiste ao passar dos tempos e que de vez em quando faz com que tu andes mais arranjadinho!... Tenho cá em casa uma mesas de apoio que não uso e essa gabardina até era capaz de me ficar bem!... E sabendo que tinha sido do Abílio ainda me ficava melhor! Pensa nisso!

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  8. Logo de manhã lhe perguntei se vinha para desvendar algum mistério...
    Disse-me que não tinha dormido...mas escrito um texto sobre a gabardine.
    Carlos não tive tempo de o ler! Resolveu então contar.me a história, a mim e ao Quito.
    O que não demorou muito tempo a contar-nos está agora contada neste texto que tanto nos sensibiliza.!
    Bela homenagem ao nosso amigo que partiu!
    O Paulo, sempre atento, deu ao texto o relevo que merecia!

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  9. A gabardine fica-te bem (eu acho que estão sempre na moda...) e, conhecendo a história dela, fica-te ainda melhor! De certeza que o Abílio, quando te viu, deu uma gargalhada das dele...

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  10. E que bem que ias com ela...AMIZADE VERDADEIRA SENTIDA COM HUMOR.
    Beijo para ti e para todos os amigos por saberem viver com este sentimento nobre.
    AMIGOS PARA SEMPRE SEREMOS E O ABILIO SEMPRE UM DELES

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  11. Sim, amigo Carlos, hoje, quando nos encontrámos na despedida do Abílio,vi que te tinhas prevenido devidamente da intempérie.
    Sabendo que és cauteloso com a chuva, como constatei num célebre dia no Estádio do Jamor, não estranhei a tua gabardina.
    Uma gabardina, simplesmente!

    Nada disso, uma gabardina fantástica, carregada de memórias, afetos, partilhas...
    Atitudes que são reveladoras do carácter de quem as toma.

    Paulo, bom colaborador!

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  12. Quando li de manhã os comentários do Carlos Viana, chorei.
    Quando releio agora o texto e os vossos comentários, agradeço a sorte que tenho em conhecer-vos e ter-vos como amigos. Com uma lágrima ao canto do olho, carais!...

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  13. A linda historia desta gabardina sintetiza bem o caracter reinadio do Abilio.Hoje pensei muito em vos todos. Também gostaria de ter estado na Figueira para essa ultima homenagem a esse Grande Amigo que nos deixou.

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  14. Tenho bons AMIGOS, uns vão para o outro lado,
    mas todos nos vamos encontrar no seu devido tempo.
    Obrigado.
    Tonito

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  15. Gestos e sentimentos que só podem existir em dois corações bons e em dois Bons Amigos!
    TERESA LOUSADA

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  16. Ainda na autoestrada, a caminho de Coimbra, para me ir despedir do meu grande amigo Abilio, olhei as mensagens que de vez em quando me iam caindo no telemóvel.
    Uma delas era este comentário feito pelo Carlos Viana no EG.
    Li-a um tanto na diagonal, dado que estava a guiar, e pensei que a afirmação do Carlos de que iria ao funeral com a nova gabardina, era apenas uma figura de retórica.
    Já perto da Capela Mortuária, vi chegar o Carlos Viana, devidamente afivelado com a vestimenta protectora da intempérie.

    Leio agora com calma o que escreveu e vejo que o texto e muito mais profundo do que pensava e mostra que o CV é mais sentimental do que às vezes nos quer fazer crer.

    Um grande abraço

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  17. Meus amigos,
    Em primeiro lugar, quero agradecer ao Paulo Moura o relevo que deu àquilo que eu pretendia ser um simples comentário. Agradeço, não por mim, porque o nosso Abílio merece todas as homenagens.

    Deixem-me confidenciar que senti algum embaraço quando me confrontei com as muitas dezenas de pessoas, algumas desconhecidas, que me olhavam como se eu fosse um qualquer maníaco temente de intempéries...
    Mas o maior embaraço, e nesse não tinha eu pensado, foi o facto de recear aproximar-me da querida amiga Zeca, temendo que ela reconhecesse a gabardina. Emoções fortes já lhe bastavam, não quis correr o risco de as aumentar. Na véspera, já tinha estado com ela, transmitindo-lhe tudo aquilo que nem era necessário transmitir-lhe, e portanto decidi "esconder-me" dela no dia da despedida física do Abílio. Um dia, qualquer dia depois deste, lhe contarei esta pequena história e espero bem que a faça sorrir.

    Para todos vocês que aqui lavraram o seu auto de apoio a este meu aparente disparate, o meu obrigado.

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  18. Mandaste-me ler o texto, Carlos, e eu assim fiz. Ficou assim explicada a gabardina na sexta-feira renascida. E renascida com ela parte das memórias boas que guardas de um grande amigo. É bom quando guardamos muitos momentos passados com aqueles que amamos. Assim estarão sempre presentes.

    Um abraço

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