terça-feira, 12 de março de 2013

O RETRATO



O dia da ira ...
O Domingo de Páscoa de mil novecentos e setenta e dois acordou sereno. Uma paz sinistra, cai sobre a Base. Cá fora, junto a um embondeiro, estamos cinquenta homens a verificar o equipamento. Armas, cartucheiras, granadas, rádios de campanha, tudo é visto e revisto minuciosamente. O destino é o Corubal e, do lado de lá do rio, sabemos que o inimigo nos espreita. Vamos, voluntariamente, meter-nos na boca do lobo. Mas nem precisámos de nos abeirar dele. Antes de chegarmos à margem do caudaloso rio, levantámos dezassete minas, no quartel abandonado do Ché - Che.  Depois, a coberto da frondosa vegetação, vimos um barco de borracha, com alguns soldados africanos e outros de tez mais clara, provavelmente cubanos, armados até aos dentes. Então, o soldado africano Vitor Baldé, apontou ao bote e disparou apenas um tiro. Os guerrilheiros, surpreendidos, levantaram-se de supetão, o barco virou e foram todos para o fundo. A reação, vinda da outra margem, não se fez esperar. Por mais de meia hora, fomos derretidos por fogo de morteiro. Deitados no chão, encobertos pela mata frondosa, apenas nos restou pedir apoio aéreo, que, algum tempo depois, chegou, nas asas prateadas de dois caças da Força Aérea. Ao segundo bombardeamento dos aviões, calaram-se as armas do outro lado do rio e nós, exaustos, regressámos à base, calcorreando os onze quilómetros que faltavam. Para nosso maior desconforto, uma bátega de água, encharcou-nos até aos ossos e, quando entramos no quartel, com o camuflado colado ao corpo e cheio de lama, mais nos assemelhava-mos a árvores com pernas, como num filme de desenhos animados. De bom, é que não trazíamos nenhuma baixa.
No abrigo, tínhamos estampado no rosto todo o esforço despendido. Tudo era fantasmagórico. Nem a Natureza se compadeceu de nós. Aquele era, decididamente, o dia da ira.

Sentado no meu leito de ferro, o suor a escorrer-me pela garganta, eu observava os outros. Houve quem, emocionalmente afetado, citasse passagens da Bíblia. Outros, de rosto fechado e olhar vazio, mantinham-se em silêncio. E o Bettencourt, mental e fisicamente frágil, nada dado à brutalidade da guerra, abriu a mala de onde tirou um grande “passe – partout” embrulhado numa velha folha de jornal. Nele, a fotografia de uma mulher muito bela, de olhos grandes e rosto expressivo. Ao ver a minha surpresa, abeirou-se de mim e segredou-me: “Era a minha mãe. Morreu cedo, mas trago-a sempre comigo.” Depois, virou a fotografia e mostrou-me a dedicatória no verso, em caligrafia bem desenhada, em que pude ler: “… Filho, estejas onde estiveres, nunca te esqueças de mim …”.

E não esqueceu. Mesmo naquele dia em que, com  a lama a cobrir-lhe o rosto, procurou com os dedos sujos, nos segredos de uma mala de cartão, uma razão forte para batalhar pela sobrevivência – a Memória da Mãe.
Quito Pereira      

16 comentários:

  1. Apesar das mais de quatro décadas que se passaram sobre este acontecimento, omiti deliberadamente o nome do soldado africano que atirou sobre o barco inimigo. Na realidade, não se chamava Vitor Baldé.

    Gostaria que não vissem nesta narração, um texto de guerra pura e dura.

    Para mim, que vivi o acontecimento, é apenas a memória do Bettencourt que me fica e a quem perdi o rasto.

    Tudo o resto, homens contra homens como de feras se tratassem, é um hino à imbecilidade humana.

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  2. Foi um ano antes, a 6 de Fevereiro de 1969, que atravessei o belo rio Corubal, junto ao Che-Che, exactamente no local onde decorre a tua história.
    Lugar de uma beleza exótica incomparável, que jamais esquecerei.
    Porque ainda hoje a minha memória mistura o idilico lugar com o afogamento de 13 dos meus soldados.
    Porque ainda hoje me revolto com a frieza imbecil dos senhores da guerra que a planeavam em Lisboa, movimentando bonecos de chumbo sobre grandes mapas militares.
    Fingindo ignorar, na sua crueza, que lá onde morriam, esses bonecos de chumbo eram de carne e osso, com sentimentos, com mães, pais, mulheres, namoradas que, impotentes, à distância, os choravam...

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    1. A memória não esquece essa realidade cruel que tão brutalmente vos fizeram cumprir...é preciso SABER lidar emocionalmente com todas estas lembranças "duras" e,aí a lembrança do lugar idilico para suplantar o afogamento!
      Fostes e sois homens com muita capacidade de sofrimento e capacidade da sua superação... continuando a VIVER com a lembrança do o MAU num permanente estado de CRIAÇÃO de momentos bons!
      Como digo no comentário ao Quito sois uns heróis no melhor sentido da palavra!

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  3. Por engano, disse que tinha sido um ano antes que por ali passei.
    Na verdade, sendo a data que referes a de 1972, seria 3 anos antes que eu devia ter escrito.

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  4. Quito
    Muitas memórias ficam e vão continuar connosco até à data final.
    Estou absolutamente de acordo com o Rui Felício que teve o azar terrível de ver partir treze de uma só vez, só que nós não íamos tão longe até Lisboa: falávamos dos generais em Lourenço Marques* porque a guerra era ao norte e eles só saíam do sul para fazer visitinhas.
    Um abraço

    * Lourenço Marques, pois era assim que se chamava na época.

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  5. Emocionei-me. As lágrimas saltaram-me sem querer.
    As histórias reais, vividas...

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  6. A guerra por que tiveram de passar "marcou-vos" duramente ao viver emocionalmente situações tão graves e chocantes...Duradouras para sempre e falar e sobretudo escrever sobre elas é,na realidade,um "escape" psicológico enorme e para nós conhecê-las "toca-nos" também afectivamente.
    O meu último companheiro também "fez" a guerra colonial em Moçambique em situação em local muito difícil,sendo o único branco mas com muitos amigos entre os nativos...O momentos da vida mais difíceis foi esse da guerra e ,posteriormente,a morte do filho de 26 anos. Tudo isto para dizer que as noites eram dormidas,antes - mal dormidas -com "pesadelos" a que eu assistia vivendo as situações como fossem ainda actuais...Fostes todos uns heróis!

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  7. Mas que belíssimo e profundo texto! Não tenho palavras! O final é absolutamente soberbo. Como eu entendo o Bettencourt...

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  8. Não se pode ficar indiferente a um texto como este!
    É um episódio de guerra dura só suavisado por quem tem o dom de bem escrever.
    Ao ler fazemos mentalmente o filme de como tudo se passou e...o que aconteceu!
    Um abraço Quito.

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  9. Aos amigos que foram forçados a participar numa guerra estúpida e cruel, eu tenho uma dificuldade imensa de comentar.
    Lembro-me dos episódios relatados pelos meus pais durante a 1ª Grande Guerra e, no meu imaginário, sempre pensava que quem fosse à guerra morria!
    Nasci em plena 2ª Grande Guerra, com todas as dificuldades inerentes à situação.
    Quando em 1960 começaram a partir os nossos jovens para a Guerra no ultramar, chorava com as amigas que viam parir os namorados, os maridos... e assim continuando, até ver desaparecer alunos!
    Quando se deu o 25 de abril, a minha primeira expressão foi -Ai que bom, o meu irmão já não vai à guerra!
    Um pânico me invade só de vos ler o que, com tanta realidade, nos transmitem, mas a história tem de ser lembrada.

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  10. Como eu vos compreendo Quito e Rui Felício!
    E como as palavras...não saiem...apetece-me citar o meu amigo Manuel Bastos, de que tanto vos tenho falado! Ele veio sem uma perna...que ficou em África, após ter pisado uma mina, numa picada por onde tantas vezes andei!!!
    "Todas as guerras começam cedo demais, todas acabam demasiado tarde. O tempo que duram serve apenas para medir a dimensão da imbecilidade humana.
    Que estas minhas palavras sejam entendidas como um apelo para que não caia no esquecimento uma guerra que poderia ter sido evitada, ou que pelo menos poderia ter sido terminada com honra e dignidade e para que não volte a acontecer que políticos corruptos, falsos diplomatas e estrategas trogloditas, convoquem o heroísmo genuíno dos vinte e poucos anos de um jovem, para acudir à sua incompetência inoperante e à sua cobarde estupidez."
    Abraço
    José Leitão

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  11. Se o soldado africano Vitor Baldé estivesse quietinho...

    Já me tinhas falado neste texto, recordas? Cauteloso, sabendo tu da minha aversão à guerra colonial...
    Meu querido amigo, procuro nunca confundir alhos com bugalhos. Nunca confundirei aqueles que foram obrigados a sofrer na pele a crueldade de uma política condenada por todas as democracias do mundo com aqueles que delas se serviram e delas se vangloriam.
    Resta acrescentar que só te podes orgulhar do humanismo com que viveste essa guerra. O Bettencourt é minha testemunha...
    Aquele braço, Quito!

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  12. Estive 6 anos de F.Aérea sem ir ao ultramar até 1973(agosto) e ouvi imensas histórias de colegas evacuados por ferimentos que desabafavam as agruras por que passavam. No meu imaginário apreendi as paisagens e vivências dos colegas que gostaria de ter vivido. O meu esteve dois anos em Moçambique em que conviveu com o pai da Ló, prof. Gaspar. Mas depois de ler os apartes(Felício) só me fica a pena de nunca ter ido "viajar" á "conta"!!
    Quito, tenho lido os teus textos e tenho adorado mas este é um tema que gosto de ler: A Guerra do Ultramar. Adorei
    Um abraço
    Fernando AZENHA

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  13. Quito,
    Bonito e dramático texto o que escreveste para partilhares connosco! É sempre com um apertozinho no estômago que leio estas páginas da vida de muitos seres que participaram na guerra colonial, sobretudo quando amigos meus dela fizeram parte! Tu, apesar das privações físicas e morais de que padeceste, dos sustos, dos medos, dos sacrifícios que te atormentaram durante tanto tempo, estás aqui ao pé de todos nós, tua Família, teus Amigos, são e salvo e segundo me parece sem "defeito" nenhum, graças a Deus!!! Por isso e mais calmamente li tudo o que escreveste até ao fim! Mas meu Amigo, aqueles teus dois últimos parágrafos deram cabo de mim...tocaste-me no ponto fraco...e comovi-me muito!!!!
    Beijinho Amigo, obrigada!

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  14. As memórias que ficaram dessas histórias reais que tanto te marcaram são-nos aqui contadas de forma emocionante neste belissimo texto.
    Obrigada, Quito

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