sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

ENCONTRO COM A ARTE



CONTOS

Da

Daisy
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Era uma vez uma menina.
—     Ó menina! Ó menina!
Riu e brincou com o menino. Era engraçado. Todo o dia colheram flores, que pisaram… para fazer perfumes. E depois anoiteceu.
—     Já vais embora?
Ia. E voltaria.
E voltou.
No outro dia, apanharam borboletas no jardim da rua. E pisaram as borboletas… para fingir que eram deuses dos animais.
Era engraçado. Todo o dia se adularam um ao outro, fingindo cada um que o outro era o Deus maior, enquanto no íntimo frisavam bem esse fingimento. E, então, voltou a ser noite. E, com a noite, o menino foi-se, mas prometeu voltar.
—     Ó menina! Ó menina!
Riu de novo e voltou a brincar com o outro menino, que lhe fez esquecer a ausência do primeiro. Voltaram a colher flores e a pisarem-nas, também caçaram borboletas, no mesmo jardim, da mesma rua, para as tratarem da mesma forma. E, ao terceiro dia, bateram no miúdo maltrapilho que vivia na cabana, junto da linha férrea. Para provarem que eram mais valentes, que eram superiores, que a vista da pobreza (que era feia-suja-rota…) lhes incomodava a sensibilidade. E fez-se noite, outra vez. Agora, uma noite mais longa, que parecia não ter fim.
—     Ó menina! Ó menina!
Já não brincou, mas riu com o menino que lhe veio fazer esquecer o outro, que por sua vez lhe fizera não mais se lembrar do primeiro. Passearam pelo jardim da rua e cuspiram nos tremoços da mulher-de-xaile. Lancharam na esplanada da Avenida e disseram "idiota!" ao empregado que demorava. E, depois, ficou escuro. O pardal da janela não voltou a cantar. As flores da varanda, secaram com a falta do sol-vida. A avó morreu a um canto, a pensar que perdera os olhos, porque não via mais a luz.
E a menina chorou.
—     Ó menina! Ó menina!
O sol começava a nascer, muito fraco. Um leve calor acariciava a pele gelada. Mas o pardal não voltava. Mas a terra seca das flores da varanda, continuava pétrea e gretada.
—     Ó menina! Ó menina!
O sol já aquecia. Pouco. Sentia que já não era o mesmo, porque nada voltava, a não ser esse fingimento de sol antigo.
—     Ó menina…
O chamamento foi-se distanciando. Mas o sol teimava em fazer-se equiparar ao outro. Mas não era igual, não era, não.
E, então, a menina inventou a solidão. E, com ela, ficou um pouco menos só, no fingimento de aceitar o sol.

4 de Outubro de 1973

7 comentários:

  1. o nascimento e a morte, alfa e ómega da vida humana, são momentos de solidão.
    Pareceria daqui possível concluir-se que essa é a característica essencial da vida.
    Mas sabemos que assim não é. Desde a infância até à velhice, que o ser humano se torna gregário, precisando da ligação a pessoas, coisas,ideais, acontecimentos, recordações ou projectos para viver em plenitude.

    A menina rapidamente colmatou a aparente solidão através do fingimento, da imaginação.
    Mais uma vez a Daisy nos apela à reflexão sobre importantes temas através de histórias simples, escritas de uma forma peculiar e atractiva.

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  2. A brincadeira de meninos que pululam nos caminhos ora rindo ora sendo cruéis...até que a menina ( porquê a menina?)se apercebeu através de vários "sintomas" tristes como a morte da avó,o silêncio do pardal, as plantas não floriram mais.
    Até o sol fingiu ser diferente...
    Fez como o sol "fingiu" e "pensou" que na solidão se refugiaria das suas perdas.
    Antecipou a verdadeira visão da dinamica da vida!
    Parabéns,Daizy!És uma boa contadora de histórias para crianças e ao mesmo tempo para adultos.

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  3. Mais um excelente conto da Daisy, que tenho o prazer de publicar!

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  4. Quem pensar, que escrever histórias tendo como protagonistas crianças é fácil, comete um erro crasso.
    Os contos da Daisy, em toda sua envolvente, revelam sempre uma mensagem, mesmo que ela venha de quem ainda possui os tenros anos.
    Um prazer ler e reler. É o que faço sempre, porque nos meandros da prosa, há sempre mais uma qualquer mensagem que escapa.
    Da Beira Baixa, para vós Daisy e Alfredo, vai um abraço amigo ...
    QUITO

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  5. Os contos da Daisy provam que erradamente se chamam contos infantis. São contos para a infância, mas escritos por adultos observadores e sensíveis!
    A solidão é nossa companhia ao longo da vida...
    Um conto que não nos deixa indiferente sempre que o relemos.

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  6. Gostei muito de ler, como, aliás, sempre acontece quando um novo conto da Daisy aparece.
    Muito obrigada pela partilha.

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