quarta-feira, 6 de junho de 2012

A PORTA

Que porta é esta, que ora me seduz, ora me afasta? . Assim se interroga Francisco Silva Amaro, poeta e escritor, nascido em Juncal do Campo. Um dia, ofereceu-nos um pequeno livro de versos, prosa e pensamentos. No seu interior, uma dedicatória, datada de Dezembro de dois mil e seis. E que pequena aldeia é esta, neste interior profundo, que fabricou alguns poetas entre os seus mais diletos filhos, pergunto eu?. Na vertigem deste mundo contemporâneo, dou comigo por vezes a pensar, até que ponto a minha tentativa de dignificar e dar a conhecer estes nossos compatriotas anónimos, não é mais do que lançar a semente numa terra estéril. Todas as noites, ficamos presos a uma televisão, que vai debitando poucas verdades, meias - verdades e muitas mentiras, manipuladas por jogos de conveniências que estrangulam a informação e nos são oferecidas numa bandeja de subserviências. Diz Francisco Silva, num dos seus pensamentos, que “ a televisão é o mais selvagem dos animais domésticos”. Partilho deste meditar, vestido em roupagens de lamento e de desencanto.
Mas vale a pena ler uma pequena parte do prefácio deste pequeno livro. Margarida Gil dos Reis escreve: “ … não será assim por acaso que a porta que “ora me seduz, ora me afasta”, tenha sido o símbolo escolhido para dar o mote a este livro. Sendo, simbolicamente, um lugar de passagem entre dois mundos, entre o conhecido e o desconhecido, entre a luz e a escuridão, mais do que simbolizar uma passagem, a porta convida a atravessá - la. É o convite à viagem pelos dois mundos que habitamos: o mundo interior e o mundo exterior. Essa fronteira pode ser assim a porta para a “aldeia globalizada”, para “o país imenso/naufragado”, mas também para o próprio individuo, para a sua ligação com a terra, com o calor, a chuva ou o céu. Silva Amaro, capta uma escala cromática de sensações e sentimentos modulados pela consciência dos limites e da fronteira. Não talvez por acaso, pela presença de um tempo que se insurge permanentemente – o tempo físico, o tempo psicológico, o tempo das vivências – lembrei-me de Samuel Beckett e da sua tragicomédia “À Espera de Godot”, onde se diz: “ Encontramos sempre qualquer coisa para nos dar a impressão de que existimos”. Com esta fórmula se resume a permanente busca humana daquilo que Silva Amaro define como “ (n) o instante que fica”.        
Mas, não queria despedir-me dos amigos que ainda vão partilhando das minhas divagações, sem Vos oferecer esta pequena prosa - poesia do autor, reveladora da sua sensibilidade:
“ Lembras-te ainda daquele tempo sem horas? a nossa existência era só saber estarmos ali eu sabia porque os teus olhos eram concretos e porque era quente o teu corpo o teu aroma a tua pele a certeza concreta de ser eras tu vertical e rectilínea intensa e viva sóbria e austera respirei-te assim feminina e doce intensamente a neve caía esfarrapada e tu vinhas lá de longe como a neve e tornavas a ir e eu vinha também por dentro dos teus olhos era um contínuo vaivém eu sei de farrapos emaranhados no vento dos cabelos libertos e presos entre os teus braços eu esvoaçava e tu nos meus como a neve que se agarrava na ramagem e ficava assim quieta e mole a gozar o panorama daí a pouco era já seiva a escorrer pelo tronco que o vento lambia por todos os lados mas voltava de novo a neve lá de longe e sempre à carga até ao esgotamento como nós até à felicidade dum campo coberto de branco na virgindade da nossa existência calma mas segura porque os teus olhos eram concretos e eu estava neles em ti meu amor”.
Quito Pereira  

15 comentários:

  1. Já me sinto melhor.
    Respiro com facilidade.
    Tonito.

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    1. António, fizeste-me rir com vontade. Um comentário destes, nem um engenheiro hidráulico ...

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  2. Louvo, naturalmente, a ideia do Quito de dar a conhecer autores que vivem e escrevem sobre o ambiente beirão, nas mesmas terras por onde ele também anda. Como Juncal do Campo, Alpedrinha, Castelo Branco…
    Não é a primeira vez que o faz. Desta vez, fala de Francisco da Silva Amaro, poeta para muitos desconhecido, mas não tanto assim na região onde nasceu e vive. O prefácio de “A Porta”, feito por Margarida Gil dos Reis, beirã e estudiosa das letras, ajuda-nos a compreender as razões do seu conteúdo. O texto de Francisco da Silva Amaro, criteriosamente escolhido pelo Quito, aguça-nos o apetite de conhecer a sua obra.
    Repito: louvo a ideia do Quito!

    Mas fica-me um amargo de boca quando neste post não encontrei, como esperava, mais uma crónica da autoria do Quito.
    Porque é a sua escrita que me desperta os sentidos, que me comove, que me faz ler e reler para guardar como pensamentos lapidares algumas expressões que sempre contêm os seus escritos.

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    1. Nem sempre, meu caro Felício, é possível trazer até este espaço, retratos de vida. Porque procuro ser fiel e não transmitir experiências de vida ficcionadas. Por vezes, num estalar de dedos, eis que aparece um protagonista. Normalmente, vidas sofridas. Que respeito. E é ao correr da pena que, grosseiramente, vou alinhando as palavras, para que a prosa saia fiel. Pelo respeito de quem me lê. Pelo respeito de quem me abre o coração. É o caso do Rosa que, meio trôpego, se curvava sobre a bengala e ao balcão da venda, me confidenciava os seus martírios. Mas hoje, o protagonista, já cá não está. Partiu, para sempre. Mas ficou um texto, que, no seu final, lhe honrará a memória. É também o caso do pescador Florival, com quem um dia me meti mar adentro e a quem, em 2OO8, prestei homenagem. Relembrarei o texto. E,em dias já passados, recordei o António Maluco. Gente do mar. Lembrei Lagos que, naquela época, timidamente, se ia libertando do seu colete de forças - a escura e antiga muralha que lhe travava o passo, quando a cidade era apenas uma amálgama de ruas singelas de casario branco, com as artes de pesca a secar junto aos muros.Vou escrevendo ao sabor das marés. E, na Beira Baixa, vou penetrando pelas vielas das aldeias esquecidas e escuras, contemplando os poentes incendiados de fim de tarde. Quantos mais Rosas encontrarei, sentados nos degraus de granito, das portas do desencanto ?
      Abraço

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  3. Desta vez resolveste escrever sobre um poeta/escritor de Juncal do Campo-Francisco Silva Amaro- e tal como escreves "dou comigo por vezes a pensar, até que ponto a minha tentativa de dignificar e dar a conhecer estes nossos compatriotas anónimos, não é mais do que lançar a semente numa terra estéril"...não te arrependas de o fazer, pois o teu contributo de os dar a conhecer não será assim semente caída em terra estéril.Deste teu texto muitos ou talvez alguns que por aqui passem vão reter este nome de poeta/escritor, de que nos proporcionas a leitura de alguns enxertos da sua prosa!
    Gostei de ler bem como, estou certo, os que vão partilhando das tuas divagações...
    Um abraço!

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    1. Pois, Rafael. Longe dos grandes centros, as pequenas aldeias esquecidas, por vezes, guardam os seus "tesouros". Vive-se hoje, a um ritmo mediático,mas, na penumbra, existem pessoas ou factos curiosos que não são conhecidos e que são "engolidos" por uma sociedade indiferente.
      O Juncal do Campo - como outras aldeias haverá por esse Portugal - tem o seu valor. Porque tem sabido preservar o seu espólio cultural. E eu, apenas me limito a dar a conhecer um pouco do seu património, por mais modesto que seja. No caso do texto em apreço, face ao prefácio de Margarida Gil, não custa concluir que este poeta e escritor beirão, merece atenção.
      Abraço

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  4. Nenhuma terra,por mais estéril que seja,deixa por tratar uma boa semente.
    Obrigado,Quito.

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  5. Toma lá um abraço,Rui Lucas. Há algum tempo que não "falava" contigo ! Não te chateies com os "dramas" da Seleção. Em breve, terás o Sol da Póvoa à tua espera. Gostei do pensamento que aqui trouxeste. Sábio ...
    Toma lá outro abraço

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  6. Com as tuas citações oportunas me deste a conhecer duas personagens que não conhecia...
    E a cultura também resulta desta troca de partilhas.
    Bem-hajas!

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  7. Um abraço, Olinda. Há sempre um Portugal desconhecido ...

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  8. Francisco Silva Amaro, poeta e escritor, nascido em Juncal do Campo, diz:
    "a televisão é o mais selvagem dos animais domésticos”.
    Quito Pereira, escritor que faz poesia, diz:
    "Partilho deste meditar, vestido em roupagens de lamento e de desencanto" e logo acrescenta:
    "Todas as noites, ficamos presos a uma televisão, que vai debitando poucas verdades, meias - verdades e muitas mentiras, manipuladas por jogos de conveniências que estrangulam a informação e nos são oferecidas numa bandeja de subserviências."
    Um óptimo diálogo entre escritores-poetas, um nascido, outro vivido, em terras áridas em que só a boa semente dá fruto.
    Mas dá!

    Toma lá mais um abraço.

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  9. Nesta tertúlia, a prosa - poesia de Silva Amaro, parecia não colher a simpatia de quem já foi júri do Prémio Miguel Torga. Enganei-me. A tua cadeira vazia, trazia-me alguma preocupação. Talvez eu tivesse avaliado mal as capacidades do Juncalense, quando me embrenhei pela sua escrita pouco convencional.
    Obrigado por teres dado a tua opinião, sobre este cidadão anónimo. O agradecimento é extensivo, naturalmente, a todos os quiseram colaborar neste espaço ...
    Um abraço, Viana

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  10. É bom termos escritores e poetas, por vezes ignorados, mas que o Quito descobre e nos transmite!

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