quarta-feira, 6 de junho de 2012

GEOMETRIA VARIAVEL


Sempre foi muito namoradeiro...
Já assim era no Porto onde nascera e vivera até à adolescência, e de igual modo continuou em Coimbra para onde foi morar por ordem do pai que o queria afastar da noite e da borga portuense. Na esperança de o ver assentar e dedicar-se aos estudos. Não era com certeza por acaso que Coimbra era conhecida como a cidade dos estudantes. A cidade onde se estuda…

Hospedou-se no Bairro, lugar pacato de gente humilde e trabalhadora.
Mas o Carlos já trazia a escola tripeira das noites da Foz e da Ribeira, entranhada na alma e no corpo, e rapidamente descobriu que, embora mais pequena, a cidade estava inundada de garotas giras, de espírito livre, que a sua visão de lince ia descobrindo, registando, frechando-as com golpes certeiros do seu olhar romântico e sorriso cativante.
Ao fim de pouco tempo já namorava uma colega do Alexandre Herculano, paredes meias com o São Pedro para onde ele carregava os livros diariamente. Era a Clara, linda rapariga a quem uma imperceptível  cicatriz no queixo dava uma beleza invulgar, exótica, sensual.
No fim das aulas, o Carlos acompanhava-a até à Av. Dias da Silva onde ela morava e depois descia os Loios a correr até ao Calhabé.
Não tardou muito que começasse também a namorar a Ângela, que se perdeu de amores por ele num baile do Futebol Clube do Calhabé. Como ela morava na Casa Branca e estudava no Liceu Infanta D. Maria, perto do Estádio, o Carlos conseguia, sem grande risco, repartir-se pelas duas namoradas, dado que elas frequentavam zonas diferentes da cidade.

Alguns amigos avisavam-no que era melhor não manter aquela situação dúplice porque era perigosa e ele podia vir a dar-se mal com isso.
O Carlos era muito senhor do seu nariz e, quando o tentavam aconselhar, respondia com alguma rispidez e sarcasmo:
- Oh pá! Elas são como as rectas paralelas! Por mais que se prolonguem nunca se encontram!
Pelo menos é isso que nos ensinam nas aulas de Geometria, não é?…
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Certa noite, abriu com grande pompa uma discoteca nova, moderna, a primeira digna desse nome na cidade de Coimbra. Ficava ali ao fundo das escadas monumentais e encheu-se de estudantes na sua inauguração. O Carlos não podia faltar e lá foi, mais uns amigos do Bairro, beber um copo, ver o ambiente e fumar uma cigarrada.
De súbito, viu a Clara dirigir-se a ele, a abrir caminho por entre a multidão, acotovelando aqui, empurrando acolá. Sorriu-lhe, deu-lhe um beijo, pegou-lhe na mão e explicou:
- Tinha-te dito que não vinha cá, mas o meu irmão insistiu tanto que vim com ele. Tão bom estarmos juntos!
O Carlos afivelou o seu sorriso de galã, mas que se desvaneceu pouco depois tornando-se progressivamente num riso amarelo.
Do fundo da sala, a Ângela  acenava-lhe. Veio a correr até junto dele, dizendo-lhe que sabia que ele viria e quis fazer-lhe uma surpresa, vindo com mais umas colegas à inauguração.
- Estás feliz por me veres?
Foi então que a Clara e a Ângela se fitaram e perceberam tudo. Ambas desapareceram, furiosas, cada uma para seu lado, remoendo entre dentes ameaças e vinganças contra ele.

 O Carlos recuperou-se a custo, acalmou e afirmou imperturbável para os amigos que o rodeavam:
- Aquilo que nos ensinam nas aulas de geometria está completamente errado! Ao contrário do que nos dizem, as rectas paralelas podem encontrar-se sim! Aliás, consta nos manuais que se encontram no infinito!
- E o nome desta discoteca, como vocês sabem,  é esse mesmo: INFINITO.

Rui Felicio
   

22 comentários:

  1. Antecipando-me, coloco já a tarja costumada em casos deste género:

    "Qualquer semelhança de nomes e factos com a realidade, é pura coincidência"

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  2. Azar, não !!! Maldita Geometria !!! Mas o Rui, que é um cavalheiro, adoçou o final, pois o mais provável, era as "vitimas" arrepelarem o cabelo uma à outra, num típico romance de faca e alguidar. Ficaram-se pelas ameaças surdas. Ainda bem ...

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  3. Estas situaçoes sao mesmo complicadas mas hoje a malta nova com a ajuda duma tecnologia avançada tem toda a obrigaçao de poder evitar situaçoes destas!!!Espero que me compreendam!

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  4. Quem criou essa discoteca sabia o que fazia: não a abriu ao cimo das Escadas Monumentais.
    E vai mais um Conto Felício para a funda São.

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    1. Sãozita,
      O Rui Felício diz "ao fundo" e não "ao cimo" das Escadas Monumentais.
      A diferença não é pequena, é que ao fundo, em direcção aos Arcos do Jardim, havia um grande espaço de convívio juvenil. Era mais um "pub" do que uma discoteca.
      Penso que ainda por lá há qualquer coisa mas confesso a minha desactualização na matéria.

      Mas compreende-se que os teus verdes anos não te permitam ter conhecido o tal "pub".
      Abr aço.

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    2. Vianita, foi o que eu disse: a «Infinito» era ao fundo das Monumentais... para evitar que alguém contasse os 125 degraus.... a rebolar desde lá de cima, se tivessem posto a discoteca ao lado das... "bolas do D. Dinis".

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    3. Tens toda a razão!
      A Sãozita era lá capaz de pôr o infinito nas "bolas do D. Dinis"...

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  5. Geomètricamente bem desenhado este quotidiano dos estudantes de então.
    Outrora menos consentido pelas "estudantas" mas, hoje, as linhas paralelas são linhas traçadas, de igual modo, por eles e por elas...( e até acho bem!!!)
    Enfim gostei de rever a definição das linhas paralelas e de apreciar, mais uma vez, o teu humor infinitamente interessante.

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    1. sabes?talvez por estas,e por outras,as meninas hoje pedem um "traçadinho"...

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  6. Um "pinga amor", bem conhecido no Bairro, nos tempos do Picadeiro, tinha uma agenda onde programava os encontros com as namoradas que ia "acumulando"! Um belo dia, por engano apareceram 2 à mesma hora e no mesmo local, o Mandarim na Praça da Republica! A coisa "fiou fina"! As escadas (lembram-se?) foram descidas apressadamente de 4 em 4 degraus! Quem seria o D.Juan???
    Mais uma excelente "prosa" do Rui Felício! Parabéns!

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    1. Nestas coisas, como em tudo na vida, nada mais perigoso do que uma agenda mal organizada!

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  7. Quando li o primeiro parágrafo!
    É lá, isto vai ser conto à amaricano!!!
    Mas fiquei descansado com a informação do autor "Qualquer semelhança de nomes e factos com a realidade, é pura coincidência"!!!!
    O Rui sempre a surpreender com estes excelentes textos!

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  8. A geometria poderá ser variável mas é invariável, diria inesgotável,a capacidade do Rui Felício nos oferecer nacos de prosa soberba, recheados dos mais variados e requintados sabores.
    É infinita a imaginação com que adorna factos que não passariam de banalidades, como é infinita a perspicácia com que utiliza a sua memória para nos remeter para locais, ambientes, vivências, que todos nós gostamos de revisitar.

    Mas, como o próprio Rui Felício já o disse, nas suas estórias há, quase sempre, um ponto de partida, um mote, que tem a ver com a realidade.
    Eu sei que ele conhece um tal Carlos que veio do Porto, por severa decisão paternal, para ver se estudava na cidade dos estudantes. Mas o rapaz era mesmo cábula profissional e a única disciplina em que brilhava era a matemática. Mas mais na álgebra do que na geometria...
    Está certo!.

    Aquele abraço.

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    1. Não sei se o protagonista desta história era cábula. Mas se o era,lamentando o óbvio prejuízo pessoal daí resultante, talvez isso tivesse sido benéfico porque permitiu que adquirisse a sabedoria da vida que as escolas não ensinam.
      E esta é muito mais importante que os conhecimentos escolares que o ensino bafiento, tendencioso e propositadamente obscuro de então ministrava.
      E hoje, passados tantos anos, sei que estou perante um homem culto, de inteligência arguta e invulgar, que faz o favor de ser amigo...

      Também aqui vale o principio de que duas rectas paralelas se encontram no infinito. Podem demorar a encontrar-se, mas encontram-se sempre, mesmo não sendo convergentes.

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  9. Carlos que veio do Porto...há só um o cábula profissional recambiado do Dragon para ser Doutor!
    Mas meteu-se na geometria variável e as rectas só se encontraram na álgebra!
    Ainda bem!

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    1. Há coisas que a matemática não explica.
      Só a vida, a forma de nela se estar, o respeito pelas divergências, pode levar às convergências.
      Nem queiram saber como vos estou grato por este bocadinho de vida.

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  10. O Rui avisou,...serão coincidências!
    Mas, houve quem enterrasse a carapuça.
    Mais um texto engraçadíssimo!

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