quinta-feira, 31 de maio de 2012

O ANTÓNIO MALUCO ...




É ali, naquela varanda do Largo do Adro, que desfio mais um rosário de memórias. Quanta saudade, quanta emoção, ao olhar aquela calçada estreita de pedras alvas e o casario branco e atarracado de terraços geométricos e singelos.
Venham comigo. Desçamos a rua e ali, naquela velha porta de madeira, batamos. Lá dentro, sentado num banco, está o António Maluco. Nasceu em Lagos e mora em Lagos. Do mar vive. Com o oceano casou, quando ficou sozinho, no dia em que a mulher partiu, para a longa viagem do Eterno. Agora, é o mar e apenas o mar a sua paixão. E o seu sustento. A camisa preta que nunca larga, é o espelho baço do seu estado de alma. E o cigarro pendente dos lábios, o fiel companheiro. Vergado sobre a grossa agulha, vai remendando as redes, com que há - de voltar à faina. O António Maluco, é homem de poucas falas. Tem uma voz gutural e embrulhada, que lhe sai dos lábios aos soluços. Desde os verdes anos, que carrega aos ombros o nome de Maluco. É assim que lhe chama o povo. Mas, na realidade, ele é Pacheco. António Pacheco. Porém, valha a verdade, pouco se importa. Maluco, é a sua coroa de glória. Relembra os dias de juventude, quando jogava a bola nos campos da atalaia e a peleja acabava sempre em zaragata. O Pacheco tinha mau perder e seu feitio travesso, valeram-lhe o distinto nome. Agora, que a vida se aproxima do cais, tem apenas como adversário o mar. Mas é uma história de amor. Mesmo nos dias revoltos, a casca de noz onde se aventura para colher o sustento, está como que abençoada por Éolo. A brisa, por vezes forte, que substitui a calmaria, sempre o empurrou para um porto de abrigo. Também a fé, materializada numa imagem de Nossa Senhora de Fátima, que daqui vejo em cima de um armário da sombria e acanhada cozinha.
Partamos e deixemos o António Maluco a remendar as malhas do seu Destino. Reparem como o seu rosto se ilumina num sorriso magoado, agora que vamos partir. Registem como nos tira o boné de forma educada, em jeito de cordialidade e cortesia.
Porque o António Maluco, também se chama Pacheco e transporta nas veias a sensibilidade e os acordes de quem dedilha, com os dedos macerados, a harpa dourada da sinfonia dos heróis.
Quito Pereira        

8 comentários:

  1. A última frase é poesia ... :)

    ResponderEliminar
  2. Eu diria que todo o texto é um poema!
    Parabéns, Quito!

    ResponderEliminar
  3. O enquadramento, a descrição, o pormenor do testemunho da imagem do personagem e do que o rodeia, tudo nos faz idealizar o que se descreve de forma única e objectiva.
    Mais um texto escorreito dum homem com sensibilidade, que consegue ver aquilo que a muitos passa despercebido.
    Gostei, toma lá um abraço Quito.
    Abílio

    ResponderEliminar
  4. Partilhei a ternura com que nos deste a conhecer o Pacheco...
    Estive lá!
    Parabéns,Quito!

    ResponderEliminar
  5. Mais um herói da Vida que salta do anonimato pela pena criteriosa e sensível do Quito.
    Mais um excelente texto, para a Colectânea da Vida do Quito.
    Aquele abraço.

    ResponderEliminar
  6. mais um apontamento das tuas muitas estadias por Lagos!
    O texto à volta desta personagem é mais uma preciosidade da tua escrita.
    E de Lagos outras memórias nos irão deliciar futuramente!

    ResponderEliminar
  7. Não acredito na imaterialidade da alma, como nos ensinavam nas aulas de catequese.

    Mas acredito na alma como “anima”, como elemento diferenciador do Homem em relação aos outros seres vivos.

    E que só cumpre a sua função se for reinventada.

    O que o Quito faz é reinventar a alma de cada vez que escreve textos como este, que nos sensibilizam, que nos apertam o coração, retratando personagens que, com uma simples leitura, nos parecem familiares, como se as tivéssemos conhecido também.

    A capacidade de transmitir sentimentos, pela escolha das palavras certas, é um dom que o Quito possui como poucos.

    ResponderEliminar
  8. Também tu, Quito, " dedilhas uma harpa dourada" e rendilhada de sentimentos belos!

    ResponderEliminar