segunda-feira, 19 de março de 2012

UM ELÉTRICO CHAMADO SAUDADE

saudade ...
Com a vetusta Igreja de Santa Cruz como pano de fundo, o cavalheiro, alto e bem aparentado no seu fato castanho e chapéu de feltro e aba - larga a condizer, aguardava a chegada do elétrico que o levaria à Praça da República. Por muitos minutos, como que absorto, ia olhando para o escasso transito e para os transeuntes que se afadigavam nos passeios das ruas Ferreira Borges e Visconde da Luz, naquele inicio da década de quarenta do século finado. Por fim, ao cimo da rua, lá apareceu o simpático meio de transporte, no seu dorso amarelo – vivo, em consonância com aqueles dias de primavera. Então, os passageiros amontoaram-se junto da paragem. Com algum ruído, o elétrico estacou e logo ali se estabeleceu, com naturalidade, um protocolo de prioridades. Entraram algumas senhoras com crianças pela mão, a seguir os idosos, depois as donzelas sós ou acompanhadas e por fim os cavalheiros. O homem de fato castanho, foi o último a entrar e o revisor, na sua farda cinzenta, puxou o fio de cabedal com vigor .. tlim - tlim … partida. Ronceiro, o elétrico seguiu viagem em direção à Praça da Republica. Por esta altura, já o protagonista da história se tinha sentado num banco de frente para outro banco, naqueles que ocupavam a traseira da composição. Até aqui nada de anormal, não fosse o cavalheiro do chapéu de aba- larga, agora a repousar sobre os joelhos, ter dado com os olhos nos olhos verdes da bela rapariga de tranças negras, que lhe puseram o coração num alvoroço. Por mais que quisesse, não tirava os olhos dela e ela, por mais que disfarçasse, olhando o pequeno anúncio de pasta medicinal Couto, que o viajante do fato castanho tinha por cima da cabeça, não conseguia deixar de retribuir um sorriso envergonhado ao jovem cavalheiro de bigode de fino recorte, que parecia esbracejar num mar revolto de paixão.
Mas tudo tem um fim. E neste fim, não foram felizes para sempre. A paragem da Praça da República, punha travão ao sonho de um amor fulminante. O relógio, esse lacaio do Tempo, marcava a hora do regresso à Terra, depois de alguns momentos em que o homem do fato castanho, pairou nas nuvens. Maldito relógio, maldito emprego, maldita vida, disse ele entre – dentes. Levantou-se então, imperial, na última réstia de esperança que ela se levantasse também. Mas ela continuou sentada, como que a dizer-lhe que a agulha da vida a levava a outras paragens, lá mais para os lados do Penedo da Saudade. Então ele, num impulso de raiva, não esperou que o elétrico parasse, quando já se aprestava para o fazer, e saltou do estribo. Com a precipitação, saltou com o pé trocado e estatelou-se na calçada. O chapéu de feltro e aba larga – esse – rebolou para debaixo do elétrico e de lá foi pescado com a bengala de um idoso. Ele, agora cabisbaixo, olhou para ela que, com um lenço alvo a tapar a boca, sorria em golfadas de prazer. Tlim – Tlim …partida. E, de novo, o elétrico, avançou. Ele, estático, acompanhou o seu trajeto até o perder de vista, ao dobrar da esquina. Ela, de pescoço erguido, ia fixando na retina o semblante e o porte daquele homem por quem teve uma fugaz paixão. Agora, a sua ausência, já não a fazia sorrir.
Nunca mais se encontraram na Vida. E aquele elétrico, passou a chamar-se Saudade. Ou Desejo.
Quito Pereira
( Neste dia 19 de Março, dedico este texto a quem, para mim, é muito especial)

6 comentários:

  1. Com pinceladas certeiras, em escassas linhas o Quito consegue sintetizar os traços da Coimbra de outras eras que a juventude actual terá dificuldade em compreender.
    Porque já não existem galãs de chapéu de feltro e bigode aparado.
    Porque já não existem eléctricos.
    Porque já quase não há transeuntes afadigados na Baixa.
    Porque o tempo que demora a ir da Igreja de Santa Cruz à Praça da República já não permite uma fugaz paixão romântica.
    Porque a publicidade à pasta medicinal Couto desapareceu.
    Porque já não há meninas de tranças pretas que escondem com um alvo lenço o seu sorriso.
    e, sobretudo…
    Porque se fosse hoje, o cavalheiro de chapéu de aba larga teria sido o primeiro a entrar no eléctrico e não o último, obedecendo ao “protocolo de prioridades que logo ali se estabeleceu com naturalidade” quando chegou o eléctrico, que é coisa que hoje caiu em completo desuso, sendo alvo de chacota quem ainda o quer usar.

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  2. Bem escrito como sempre.
    Tenho saudades dos sons.
    O rolar nos carris, o clique do alicate dos bilhetes, da sineta de pé do guarda freio que servia para avisar da aproximação do eléctrico, o tlim para parar e dos dois tlim para seguir a marcha.
    Enfim o que lá vai, lá vai.
    Tonito.

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  3. Excelente texto que o eléctrico proporcionou!
    Nele podemos recordar como a cortesia, a amabilidade,o respeito pelos mais idosos, por situações naturais como a gravidez, pelas crianças,etc, situações que nos transportes de que o eléctrico era o mais caracteristico aqui em Coimbra.
    Sabemos que os tempos são outros, há mais igualdade de direitos entre homens e mulheres, por exemplo, mas fica sempre bem ser gentil e respeitar as situações particulares que continuam a existir.É uma questão de educação!
    É muito bem complementado pelo Rui Felício!

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  4. O eléctrico partiu, tlim-tlim, mas temos o Quito connosco.
    Como sempre, oferecendo-nos um rico naco de prosa.
    Prosa carregada de saudade, também de amor pela cidade que tanto ama.
    Mas, acima de tudo, da poesia que lhe vai na alma.
    Aquele abraço!

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  5. Se fosse hoje, todos nós entravamos a seguir às senhoras com crianças, não por falta de cortesia, mas porque já todos somos idosos (seja lá o que isso queira dizer...)!... Mas tenho pena, porque gostava de entrar depois e sentar-me á frente dessa musa de olhos verdes e tranças pretas...
    Um belo conto, que retrata e muito bem, os anos 50!

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  6. Bem... bem... quando cá chegámos a minha mulher foi mal tratada por uma senhora para os seus setenta anos, por lhe ter dado o lugar.
    Por outro lado, aogra o primeiro lugar lateral oposto ao motorista é para pessoas em dificuldade e "quase sempre" o lugar exactamente do lado oposto, é para uma terceira idade.
    Derivado à televisão, em certas situações há uma evolução positiva.

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