quinta-feira, 22 de março de 2012

A GUERRA E A FLOR ...

Manuel Bastos - A guerra em tons de poesia ...
Regressou a chuva. Uma dádiva dos céus, intensamente reclamada por quem vive da lavoura. Aqui, neste lugar, sinto-me confortável no meu pequeno escritório, enquanto a água, em manso regato, vai caindo num fio transparente e contínuo da beirada dos telhados. Lá fora, como se fosse nevoeiro, uma cortina espessa engoliu as montanhas em remoinhos de vento, que fazem gemer as árvores desnudadas de folhagem. Um cenário que convida à leitura. Passo os olhos pela minha pequena biblioteca, sitiada entre livros de Farmacopeia, de Direito Farmacêutico, de Química Orgânica ou de Farmacognosia. Fixo-me então naquele livro de capa verde. O seu autor, tem um simples e desconhecido nome: Manuel Bastos.
Não é esta a primeira vez que folheio este manual de guerra, em tons de poesia. De reler as páginas de uma prosa, onde, no cano de uma espingarda, pousam as asas multicolores de uma frágil borboleta. Logo ao abrir a primeira página, leio uma simples mas expressiva dedicatória que diz: “Ao meu amigo Quito com um braço bem fraterno – José D’Abranches Leitão O9.O2.27”. Não sabia o Leitão que, amavelmente, me estava a oferecer um livro que tanto me impressionou. Não pela fera guerra. Mas pela prosa que mata a guerra.
Como o cirurgião de bisturi ágil, que expurga do corpo do paciente o tumor que lhe ameaça a vida, também eu tento extirpar dos “Cacimbados”, a prosa bélica de quem aponta à imbecilidade dos homens o dedo acusador, mas que não está ressentido com as armadilhas do Destino. Para aqueles que ainda vão suportando este monólogo, transcrevo pela pena de Manuel Bastos, alguns extratos do seu livro: “ Não dei pela noite cair, pela cor a desbotar-se primeiro no céu e depois na superfície de todas as coisas, tornando-as mais suaves como se o dia se sentisse cansado …”. Outro exemplo: “ A memória do arco - íris, onde a natureza brinca com a luz e a diferente textura dos objectos, uma brincadeira da natureza ou uma dádiva dos deuses para quem não tem mais nada do que os sentidos para perceber o mundo”. Ou então: “ Olho a Lua enorme, em pleno dia, com um ténue halo translúcido a manchar o céu, agora quase limpo sobre o aldeamento. Tenho a ilusão de estar a vê-la no tempo presente, mas como se sabe, a imagem que vem ao meu encontro demorou à volta de um segundo chegar. Algumas das estrelas que hão-de aparecer daqui a pouco, esburacando o manto negro do céu, podem ter desaparecido muito antes do primeiro homem ter nascido e eu estarei a vê-las”.
No entardecer do livro, o autor faz a sua reflexão final. “ Algures no Planalto dos Macondes, onde um dia colhi a derradeira imagem de um céu azul luminoso, antes que a palavra “”FIM” fosse escrita na minha história de guerra. Lá, onde a fragrância exótica da selva e o relento rançoso da guerra se prenderam ao meu corpo para sempre, ficou um pouco de mim e, se é verdade que na Natureza nada se perde, então ainda lá perdura transformado. Sabe-se lá em quê …
Desejo intensamente que seja uma flor”.
Assim escreve Manuel Bastos. Português, cidadão e escritor. Combatente da Vida e das palavras. Das palavras doces , que aniquilam a guerra.
Quito Pereira.
(texto dedicado ao meu amigo José d’ Abranches Leitão)

10 comentários:

  1. Texto escrito no Outono passado.
    Como o prometido é devido, cá está, Leitão, o "Cacimbados visto na minha ótica.
    É o perfume da escrita, na lama da guerra ...
    Um abraço

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  2. Obrigado caro amigo! Fico sem palavras...com a dimensão da tua amizade, para mim fraterna amizade!!!

    E cito novamente os "Cacimbados-A vida por um fio"!

    Todas as guerras começam cedo demais, todas acabam demasiado tarde. O tempo que duram serve apenas para medir a dimensão da imbecilidade humana.
    Que estas minhas palavras sejam entendidas como um apelo para que não caia no esquecimento uma guerra que poderia ter sido evitada, ou que pelo menos poderia ter sido terminada com honra e dignidade e para que não volte a acontecer que políticos corruptos, falsos diplomatas e estrategas trogloditas, convoquem o heroísmo genuíno dos vinte e poucos anos de um jovem, para acudir à sua incompetência inoperante e à sua cobarde estupidez.

    Manuel Bastos

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  3. Upss! Toma lá um abraço.

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  4. "Deitou-se a olhar para as botas. Lá fora um calor insuportável. Ao longe o arame farpado e a mata sem fim.
    Deitou-se cansado. Cansado, exausto, esgotado da guerra.Debaixo da cama a caixa.Dentro da caixa as cartas. Debaixo da caixa o soalho de cimento. Debaixo do soalho a terra vermelha de Moçambique (...) algures, uma vilazinha onde as pessoas que ama devem estar, sabe-se lá a fazer o quê. Reconforta-o que lhes faça falta. A única coisa boa aqui, neste desterro é saber o que lhes faz falta. Continua a olhar as botas.Os atacadores desapertados. Deitou-se sem tirar as botas porque o corpo se atirou para cima da cama em busca de descanso, antes das mãos as desenfiarem dos pés.
    À noite a Lua lá em cima aproxima-o dos seus. A Lua pode vê-los a todos ao mesmo tempo e isso da-lhe uma ilusão de proximidade entre eles. E de repente a solidão.
    Duas fotos nas mãos. Os olhos a desviarem-se dos pés, já nus sobre a cama e a olharem lentamente as fotos. Uma da Virgem de Fátima e a outra da namorada sorrindo. Virou-a para ler a mensagem no verso e leu-a como se nunca a tivesse lido. É assim com a poesia também, sabemos os versos de cor mas gostamos de saborear as palavras e o seu desenho no papel; é assim com os frutos também, sabemos o seu gosto mas mastigamos devagar para sermos surpreendidos de novo; é assim com os beijos também, enquanto a paixão dura, é sempre a primeira vez, demoramos para não perdermos um soluço de prazer, uma tremura e um silêncio, que tudo o que se diz num beijo é silêncio..."
    in "Cacimbados"

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  5. Tema incómodo este…

    Hesitei se devia comentar. Ao decidir-me por fazê-lo, pesou a ideia de que não deve ser branqueada uma zona cinzenta das nossas vidas que, queiramos ou não, há-de marcar-nos até sempre. Mesmo sabendo que sobre o assunto, são muitas e diferentes as perspectivas!

    Mas, para o fazer com a clareza possível, não sou capaz de sintetizar o que quero dizer. Perdoem-me por isso a extensão do comentário. Ou, em alternativa, que não o leiam, pura e simplesmente!

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    Defendo, desde os meus tempos de juventude, e por ele me norteio, talvez utopicamente, o humanismo universalista que deve imperar num mundo que desejo seja múltiplo, sem supremacia de pessoas, etnias ou nações, uma sobre as outras, respeitando os diferenciadores costumes, as distintas formas de expressão, as variadas crenças, as milenares culturas, as diferentes formas de pensar.

    Talvez por isso, procurei sempre afastar e repudiar a sordidez e a crueza da guerra que fui obrigado a viver, valorizando antes, e em contraponto, o relacionamento humano com os soldados e com as populações.

    Bebendo destas populações os seus saberes ancestrais, os seus anseios, apreendendo-lhes a noção das injustiças de que estavam a ser vítimas. Ao princípio espantei-me com a amplitude dos seus conhecimentos e com as suas demonstrações de inteligência vivaz, na minha ignorância bacoca de europeu civilizado, pré-fabricada nas baias de um ensino universitário muitas vezes tendencioso, arrogantemente convencido que estava de ser dotado de uma cultura superior à daquelas gentes de aparência primitiva.

    Foi mania que rapidamente perdi…

    Tentava fazer-lhes compreender que nós, que aos seus olhos nos apresentávamos como seus algozes, não eramos afinal mais do que verdadeiros escravos dominados pelos mesmos que sobre eles e também sobre nós exerciam uma tutela asfixiante e um poder absoluto.

    Orgulho-me por isso de ter conseguido, naquele ambiente hostil, superar a irracional revolta contra quem defendia a sua terra, com que nos tinham metralhado na escola militar de oficiais milicianos, substituindo-a pelo humanismo que enforma o meu modo de ser.

    Embora sofrendo, como a maior parte dos jovens da minha geração, a injustiça de ter sido obrigado a fazer uma guerra, em si mesma contrária aos meus princípios, tive a sorte de não ter dela regressado com marcas físicas insuperáveis.

    O mesmo não podem dizer outros, como é o caso de Manuel Bastos, cujo livro “Os Cacimbados” já li, e que observa a sua experiência como um repórter de guerra, desvendando-nos os factos numa prosa de qualidade literária invulgar em que por vezes tempera o retrato cru e objectivo dos episódios que viveu, com a poesia e a meditação sobre a lonjura da terra que deixara e sobre as belezas da natureza que o envolvia na sua solidão a tantos milhares de quilómetros.

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    Talvez por isso, pese embora a enorme qualidade da sua escrita, eu prefira adoptar uma perspectiva de observação diferente da do Autor. E que é a de recordar o lado positivo da minha vivência ao lado de gente que de outra forma, sem lá ter dido, não teria conseguido compreender em plenitude. E, ao mesmo tempo, desprezando ou colocando em lugar secundário os matizes atrozes dos combates.

    Porque até nas coisas más podemos descortinar coisas boas…

    Aliás, e ainda bem, essa minha perspectiva está aqui caldeada pela escolha criteriosa que o Quito fez dos excertos do livro que transcreveu. Tenho a certeza que essa escolha foi propositadamente feita para revelar a faceta mais poética do Autor…
    E, se calhar também, para relegar a sordidez da bestialidade da guerra.

    Citando o Quito:
    “Como o cirurgião de bisturi ágil, que expurga do corpo do paciente o tumor que lhe ameaça a vida, também eu tento extirpar dos “Cacimbados”, a prova bélica…”

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    1. De facto, o tema é incómodo.
      A bestialidade da guerra crua, passou por muitos de nós. Neste particular, dá-se até o facto de o Felício, tal como eu, ter consumido dois anos da sua juventude, num vespeiro.
      Não gosto de temas de guerra. Mas gosto de quem a consegue romancear por um determinado prisma, em momentos de prosa-poesia, dando relevo ao Homem, às suas emoções, aos apelos da natureza.
      Manuel Bastos escreve bem. Mesmo muito bem.
      Talvez eu seja um deslinhado e um contemplativo. Eu também gostava de ver o pôr do sol na bolanha. Do voo circular das águias. Das noites de lua cheia. Do cântico ancestral da mulher africana. Da sabedoria que o Bala Embaló me transmitia na seu sentido refinado de justiça. E gostava dos poentes incêndiados.Do cheiro da terra molhada. De África.
      Já lá voltei. A Moçambique. Irmanado no desejo de abraçar as suas gentes. A guerra, não entra neste dicionário. Ao meu livro de memórias, arranquei de maneira brutal as páginas pardas. E, de repente, aquele já não era um memorial de guerra. Era apenas o meu reencontro com África num sorriso de mulher.
      Hoje, nas novas batalhas da vida dura, muitas vezes me sento na cama a olhar para as botas, como Manuel Bastos. E, por vezes, lembro-me de África. Mas, quando vou à varanda de minha casa, não vejo nenhum embondeiro secular, nem ouço o batuque ritmado de um tambor.
      Apenas vejo uma selva de pedra com soldadinhos guerreiros, que se acotovelam nos passeios na labuta pela vida.
      São as vitimas do nosso tempo. Guerreiros da vida, manipulados por mãos invisíveis, sem farda nem destino ...

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  6. Na pressa de ir escrevendo sem olhar para o que ia ficando registado, titulei erradamente o livro de Manuel Bastos. Com efeito, não é como escrevi "Os Cacimbados", mas simplesmente "Cacimbados".
    Para além de mais dois menores erros de digitação que me dispenso de corrigir porque, sendo perceptiveis, em nada alteram o sentido do comentário.
    As minhas desculpas.

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  7. Já conhecia alguns destes textos que o José Leitão ia enviando.
    São relatos do muito que se passou nestas guerras coloniais, que ficam como testemunhos para as gerações posteriores à guerra Colonial.
    Os que por lá passaram como combatentes serão talvez os leitores mais interessados, relembrando alguns desses episódios relatados.
    O José Leitão sempre foi o grande divulgador desta obra literária, porque conhecedor da qualidade da mesma e penso também pela amizade para com Manuel Bastos.

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  8. Por muito que te custe, meu caro Quito, as palavras doces não aniquilam a guerra.
    Vale a pena ler e reler o comentário do Rui Felício.

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  9. Pelo respeito que me merecem os intervenientes numa guerra que não queriam e que tanto fez sofrer os próprios, os seus familiares e os amigos, limito-me a tentar compreender o sofrimento que têm inculcado nas suas almas!
    Gostei de vos ler, muito!

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