segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

ENCONTRO COM A ARTE

CONTOS
da
DAISY
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OS OLHOS PRETOS DO PROFESSOR DE FRANCÊS

        Abrandou a corrida. Acabou por parar, cansada, e sentou-se no chão. Doíam-lhe os pés. Descalçou as sandálias e poisou-as na erva fresca do lameiro.
        - Eh! Que faz aí?
        Agarrou nas sandálias e recomeçou a correr. Porque é que fugia? O lameiro era do avô. Quem poderia aborrecê-la por estar em terra que lhe pertencia? Mas fugia.
        Tropeçou num buraco cheio de água, e estatelou-se, ao comprido, com a cara a roçar o chão e a erva verde a entrar-lhe pela boca. Mas era bom estar assim. Estendeu os braços, comprimiu o corpo de encontro à erva, aconchegou a face, sentindo a humidade começar a penetrar-lhe através do vestido.
        Já não fugiria mais. Havia de ficar ali. Estava-se tão bem!...E, além do mais, nem ela própria sabia porque fugia… porque era?
Começou, mentalmente, a reconstruir o sucedido.
        O novo professor de francês tinha sido convidado a passar o dia lá em casa. Ela nunca reparara muito nele; nem tão-pouco, simpatizava muito com o gaulês; era do tipo de francês muito loiro, muito branco… como não gostava dele, não se interessava pelas aulas. No fim do período, as notas foram para casa, mandadas pelo director do colégio. O avô ralhou. A mãe ralhou. Até a Matilde ralhou! Depois, todos queriam resolver o problema,  cada um à sua maneira, claro. Zangaram-se, berraram, em suma, exaltara-se até ao último grau, sem calmamente, indagarem porque é que ela não estudava. A mãe meteu-se no carro e partiu nesse mesmo dia para Vila-Real: a culpa era do professor que não devia ter habilitações para ensinar as crianças: iria falar com ele. Não voltou nesse dia. Nem no outro. Três dias depois, chegou a casa, muito contente, feliz mesmo. Ralhou com ela. Que já sabia que era ela que não estudava, que a culpa não era nada do M. d´Alencourt, que ela precisava era de dois açoites. Não lhos deu. Subiu ao quarto, indiferente ao avô que gritava:
      - E foi preciso tanto tempo para descobrires isso? Nem um telefonema nos fizeste!...
        A mãe não ouviu. Continuou a subir as escadas. Parou ao fim do primeiro lance, debruçou-se no corrimão:
      - O Pierre d´Alencourt vem cá passar o dia. Convidei-o. É de muito boas famílias e deve ser interessante manter relações com eles. Matilde!... Manda preparar qualquer coisa muito especial para o almoço!
        E o M. d´Alçencourt veio. Muito loiro, muito branco, um riso aberto mostrando a dentadura alva. Os lábios eram finos e desapareciam completamente quando  escarancava a boca num sorriso. Não de foi embora nesse dia. Ficou. E outro. Acumulava-a de atenções.
        Sentiu uma mão sobre o ombro direito. Depois, outra sobre  o esquerdo e alguém a levantou.
       - Alors, que está aqui a fazer?
      Desprendeu-se bruscamente e recomeçou a correr.
     - Eh, espere! Não lhe faço mal. Que tem, Joaninha? –
       Parou, de repente.
    - O meu nome é Joana Maria!
    - Ora, é apenas uma rapariguinha. Joaninha ainda lhe fica muito bem… Oiça, já sei que não gosta de mim. Agora, que estamos aqui, juntos, sozinhos, quer explicar-me porquê?
       Afagou-lhe docemente a mão. Sorria e os olhos pretos ficaram, pela primeira vez, em evidência. Porque é que não gostava dele? Os olhos brilhavam, muito redondos., tão bonitos!...
      -Mas eu gosto de si, M. d´Alencourt!...
      Gostava? Deu-lhe um beijo na face. Picou-se na barba. Recusou, mas estendeu-lhe, de novo, a mão que ele apertou com força.
     -Chama-me, então, simplesmente, Pierre. Vamos ter com a sua mãe?
     -Vamos, Pierre.
             18 de Março de 1971
desenho de Zé Penicheiro

6 comentários:

  1. É com todo o prazer que publico mais um excelente conto da Daisy!

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  2. É deliciosa a forma como a Daisy nos transmite a transformação, diria a mutação, dos sentimentos de uma adolescente.
    Joaninha? Não! Eu sou a Joana Maria...
    M. d´Alencourt? Não! Pierre, simplesmente Pierre...
    É assim, com toda a simplicidade, que a autora nos diz que a Joaninha deixou de fugir e passou a aceitar que o gaulês pisasse a terra que lhe pertencia.

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  3. O Carlos Viana faz - em meu entender - um comentário muito bem conseguido, alíás como é seu timbre.
    De facto, é a "mutação de sentimentos" como o Viana diz, a "chave" deste conto, que é um intrincado mundo de emoções e sentimentos...
    A "misteriosa" ausência da mãe, por mais tempo que era suposto, a preocupação acalorada do avô em jeito de reprimenda. Depois o Pierre, de novo à "boca de cena" do conto, pela mão da mãe de Joana Maria, que o mesmo é dizer, pela pena da autora...
    Todo o enredo é um fluir de sentimentos diversos, numa escrita que tem a impressão digital da Daisy ...
    Uma boa leitura, ao crepitar da lareira ...

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  4. Os contos da Daisy, de leitura atractiva, entrelaçam tantas pontas que, pedindo-lhe desculpa, me atrevo a pegar numa delas, para sonhar, imaginar, conjecturar…

    Naquela casa todos lhe ralharam. A mãe, o avô e até a empregada! Do pai não recebeu nenhuma reprimenda, talvez porque ele já ali não vivia.
    Quem sabe, já nem vivesse em lado nenhum.
    E a mãe precisou de três dias em Vila Real para se inteirar das razões das más notas?
    O avô, perspicaz, estranhou. E mais estranhou ainda por a mãe nem um telefonema ter feito a explicar a demora.
    E, se calhar, mais sólida lhe ficou essa estranheza, quando a mãe chegou muito contente, quase feliz, informando que o professor viria passar uns dias em sua casa.
    Agora que até ela já gostava do Pierre, a Joana iria estudar mais e ter boas notas a francês.
    E a mãe não lhe voltaria a ralhar, feliz como estava.

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