quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

O PRETÉRITO DO TEMPO ...

Estou só. Aqui, neste lugar, rodeado de montanhas. De novo me deixei engolir pelas entranhas do silêncio e da solidão. Ali, naquele lugar, uma pequena fita de alcatrão, vai serpenteando por entre colinas. É a estrada que me conduz à aldeia, aninhada no ventre de um vale sombrio. Lá longe, ali ao longe, o fio de estrada desaparece numa curva suave, por entre uma guarda – de - honra de pinheiros bravos. Olho o horizonte, esfumado por entre castelos de nuvens, que se arrastam pachorrentas, sobre as montanhas cor de cinza. São cinco da tarde e uma brisa gélida sopra agora de mansinho. Sinto que estou no pretérito do Tempo. E da Vida. Ali, naquele desterro, quatro muros brancos e singelos, delimitam o minúsculo cemitério. Cá fora, fardados a rigor, na sua casaca azul e galões dourados, vários soldadinhos perfilados. Vêm saudar quem partiu, com um tiro de carabina. Aguardo a chegada do cortejo. Nem preciso de meditar muito sobre o que se vai passar. Tudo tem o seu tempo, neste Tempo. Tudo tem um ritual, nesta cerimonia simples e austera. À frente o padre, depois as mulheres e, no fim, os homens em passo lento. O silêncio é profundo e avassalador. Apenas o matraquear dos sapatos das mulheres, no empedrado da calçada, fere o silêncio do povoado. O negro predomina nos trajes femininos. Nas suas máscaras pálidas, avivam-se as rugas de um passado sem rosto. Os homens, cabisbaixos, olham-se de soslaio, escondendo as emoções, tolhidos num labirinto de lembranças. Quem ali vai, despedindo-se da vida, foi conterrâneo de labuta e de folias. Quando o garrafão corria de mão em mão, naquela mesa corrida, debaixo das latadas. E a concertina, que tocava tardes e noites sem fim, com os companheiros, já meio pingueiros, a cantar à desgarrada, nas noites mornas e de luar. Mas hoje, aqui, neste lugar, escreveu-se um ponto final. Retiro-me, antes da salva de tiros. A curva suave da estrada misteriosa, suscita-me curiosidade. Parto sem destino, no galopar dos meus pensamentos pardos. Uma enorme descida, leva-me até um vale perdido no Tempo. Ali, não existe Passado. Nem Memória. Um velho de cajado, andrajoso e longas barbas brancas em desalinho, saúda-me com uma vénia. Aceno-lhe, correndo agora à desfilada na procura do meu Tempo presente. Aquele casario longínquo, que já vejo esbatido na bruma do entardecer, é-me familiar. Sinto que cheguei ao meu porto de bonança. Entro no meu escritório, refúgio das minhas emoções . Enquanto lá fora, a noite cai fulminante sobre os telhados escuros e o vento corre célere pelas veredas da aldeia, neste lamento de Outono.
Q.P.

13 comentários:

  1. Perdoem-me o anacronismo, mas apetece-me substituir o titulo da crónica do Quito, por Pretérito Presente.

    Com efeito, a minúcia e o realismo da descrição, coloca-me lá onde ele esteve, como se também eu tivesse assistido, e induz-me involuntariamente a estabelecer um paralelismo entre um funeral numa remota aldeia serrana e idêntica cerimónia numa grande cidade.

    A aldeia aquieta-se, pára e as gentes largam tudo para prestar a derradeira homenagem a quem chegou ao fim da vida. Naqueles momentos únicos, nada é mais importante que a pessoa que sofreu o desenlace definitivo e certo. Até o tempo, ele próprio, também parece ter parado.

    Ao invés, na cidade, quantas vezes tenho assistido a cortejos fúnebres, em louca correria automóvel, deixando indiferentes os passantes e impacientes os condutores empastelados no trânsito caótico, pela perda de tempo que o cortejo lhes veio acarretar. Se calhar, maldizendo o defunto, entre dentes...

    É por isso que me apetece dizer que a história que o Quito conta, é pretérito, é resquício de épocas passadas, cada vez mais raros.

    Mas é também presente porque se passou nos dias de hoje.

    Naquela aldeia ainda se respeitam os mortos. Respeito que é apanágio dos humanos. De cada vez menos humanos, infelizmente...

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  2. De facto, foi ontem que me perdi numa minúscula aldeia, sufocada entre pequenas colinas.
    As montanhas ao longe, as nuvens em formas bizarras, a brisa fresca, e os soldadinhos da GNR que, pelo aparato da farda, mais pareciam figuras coloridas de um presépio, deu uma dimensão quase irreal ao momento. Estive só, de longe, a observar a natureza e o comportamento cívico dos acompanhantes daquele cortejo sem lágrimas. A dureza da vida, secou-lhe a fonte das emoções. Que não a do sofrimento.
    Não esqueço o idoso de barbas venerandas, que me saudou, naquele vale profundo, perdido no Tempo.
    Um homem morreu. E, com ele, partiu também um pouco da aldeia.

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  3. Por mim a escrita tem minúcia, e pormenores curiosos bem escritos.
    Rapaziada, por mim é diferente, a fita de alcatrão é estrada e foi mais um que se passou para o outro lado.
    Desculpem a minha franqueza mas eu estou assim, nesta altura do campeonato.A foto tem muita PINTA.
    Um Abraço.
    Tonito.

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  4. O dificil para mim é ter capacidade para comentar com palavras certas e no seu devido lugar um texto com este nível!
    Também, enquanto lia, acompanhei passo a passo o cortejo fúnebre que levou este cidadão até à sua última morada,chegando ao pormenor de ir vendo as máscaras pálidas, as rugas e ouvindo na minha cabeça o matraquear dos sapatos das mulheres!
    É impossivel percorrer todo o texto sem sentir palavra a palavra, frase a frase, todo o sentimento com que foi feita a descrição de um final de existência terrestre, mas que sendo numa aldeia rodeada de montanhas, sem a azáfama de uma cidade, permite uma paz, um silêncio, propício a quem tem talento para escrever, para nos envolver numa leitura que nos faz partilhar as angústias que ele próprio sente e que tão bem passa a à escrita!
    Um abraço

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  5. Não resisto.
    Numa recente conversa com o Quito, impressionou-me a sua modéstia, diria timidez.
    Receava ele que a este seu gosto pela escrita, esta sua intenção de comunicar com os amigos, fosse entendida como desejo de protagonismo.
    Protagonismo dás tu, meu querido amigo, às figuras que crias nas tuas histórias. Também dás protagonismo às emoções, sim, porque as emoções também são protagonistas, como se pode perceber neste texto e como ressalta de todos os teus outros já escritos.

    " Sinto que cheguei ao meu porto de bonança. Entro no meu escritório, refúgio das minhas emoções. "

    Espero bem que nos continues a transmitir as tuas emoções. Estou certo que tenho a meu lado muitas outras pessoas a desejar que o faças.
    A bem da nossa saúde mental, porque os teus contos são um balsamo para a dura vida que enfrentamos.
    AQUELE ABRAÇO!

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  6. Gosto de ler o que escreves com o coração,e para o coração.
    Obrigado.
    Um abraço.

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  7. O que posso eu dizer?!... Estou um pouco como o Rafael, também sinto falta de capacidade para comentar contos como este!
    Estes textos, pela sua qualidade, são 3 em 1 ... O texto e os belíssimos comentários do Rui e do Carlos Viana.
    Obrigado!

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  8. Como este Mundo seria muito melhor, se todos os humanos (?)....tivessem a tua DIMENSAO!!! tu nao so emocionas, como encantas...que esse coracao d' oiro!!!
    Toma la mais um abr.

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  9. Pouco poderia mais acrescentar ao que foi dito.
    Gostei e desejo que a tua inspiração te não falte porque tens reunidas todas as condições para te transformares em algo de muito sério.
    Um abraço
    Abílio

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  10. Quito, concordo em parte com o Rui Felício, pois eu acho um "pretérito imperfeito", a narração decorre num tempo passado, mas que na altura era presente!

    Gramática à parte, recomendo-te que passeies por esses lugares tão peculiares, onde, só tu, consegues ver com detalhes elaborados, a vivência, quase ancestral das personagens que "vemos"!!!

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  11. Amigo Quito,
    Mais uma vez gostei muito!
    Mas continuo a não sentir capacidade para comentar os teus textos, talvez pelas emoções fortes que eles encerram, talvez pelos belíssimos comentários de quem antes de mim, te comentou e retratou e muito bem.
    Continua. Um forte abraço.
    Olga

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  12. Será, o pretérito do presente.
    Porém, o Tempo é intemporal.É presente e passado.
    Os factos, tão distantes do que é a realidade citadina, tiveram uma dimensão irreal, na perspectiva de um Passado que se julgava e julga morto.
    Se repetisse o texto, dar-lhe-ia o mesmo título."O pretérito do Tempo". Neste caso Tempo, como momento presente ...

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  13. O Quito transmite-nos o que vai observando com os olhos do coração de uma forma muito bonita.
    Subscrevo o que disse o Jottaelle.

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