quinta-feira, 6 de outubro de 2011

OS PECADOS DA PORTA 26 ...

Bienvenidos ao circo ...


Naquele final de tarde, era tempo de partir. Sentado junto da “Gate” 26 do renovado terminal 1 do Aeroporto Internacional de Lisboa, eu aguardava embarque. Vou lendo Baptista Bastos. Escolhi “Cão velho entre flores”, romance em que o autor – em jeito de confissão - fala da família, das suas angústias e desencantos. E da pobreza. A prosa, pinta-a de cores escuras, por vezes com pormenores macabros, roçando a tragédia, naquela Lisboa de outras eras, no dizer da letra de um fado. Não será um livro adequado a tempo de férias e de libertação do espírito, admito. Mas para me divertir terei - tenho a certeza - os meus companheiros de viagem, que não conheço. Sentado em posição estratégica, vejo-os à minha frente, como num grande anfiteatro. Aos poucos, vão chegando em pequenos grupos, e, entre estes, destacam-se os que levam crianças. As mães, na dianteira, empurrando carrinhos de bebé. Atrás, os desamparados pais, com a criança presa no braço direito, um enorme saco no ombro esquerdo, onde se pode ver uma bateria de biberons de leite e de água, fraldas descartáveis, livros infantis, baldes e pás de praia. E ainda sobra uma mão para trazer um boneco preso por uma perna, a quem a Joaninha – um amor de criança – já arrancou um olho e três dedos da mão direita. Sentados, de cabeça erguida, vão olhando o écran e a hora da partida. A tensão sobe de tom, com o aproximar do momento de embarcar. É então que tomam o balcão de assalto. Como se os lugares não fossem marcados e se preparassem para arranjar um lugar airoso junto da pista do Circo Cardinali. Todos ao molho, ficam junto da menina que lhes dará o precioso “ticket” de alforria . Outro diligente funcionário do aeroporto, de camisa alva e gravata azul, bate palmas como quem enxota galinhas. Tenta pôr ordem na casa. Em plenos pulmões vai gritando: “... é favor fazer duas filas, uma para adultos com crianças e outra para os restantes…”. Gera-se então nova confusão, com duas filas aos “S”, todos desconfiados uns dos outros. Na hora certa, o enorme pássaro de metal parte rumo aos céus de Lisboa. Mal foi dada ordem de desapertar cintos, o grupo veraneante levantou-se como uma mola e o avião espanhol, inteiramente lotado de portugueses em férias, é agora uma enorme feira. Aos encontrões, as hospedeiras vão tentando levar a cabo a sua espinhosa missão. E assim é, por muito tempo. Apenas a indicação de que vai ser servida uma refeição, os faz sentar. Era a melodia que queriam ouvir. Por essa altura, uma tenra criança de cinco anos, de pernas escarranchadas no encosto do assento, dava azo aos seus dotes de equitação. Depois foi o drama. Quando pensavam que iam ter à beira dos queixos “ternera de cerdo” ou “gambas a la plancha”, o que a Ibéria tinha para oferecer, era apenas umas sandes manhosas enroladas em papel – celofane, com um aspecto muito viajado. Alguns, com um ar infeliz, ainda debicaram no pão. Os outros, sentindo-se enganados, voltaram a levantar-se. Nova feira dentro da aeronave. Por essa altura, era já noite cerrada. Passada a vertical de Palma de Maiorca, continuámos rota. A escuridão e as luzes de sinalização na ponta das asas, davam um desconforto sinistro. Então, acobardados, sentaram-se novamente. Minutos, muitos minutos depois, perdemos altitude. O silêncio é total. Umas luzes no meio do nada, indicam o destino. Com estrondo e circunstância, a nave bate no asfalto, inverte reactores e quase paralisa no fim da pista. É então que o grupo excursionista, rompe numa estrondosa salva de palmas. O Comandante Madrazo, qual domador de feras, conseguira aterrar em segurança, dominando o enorme monstro alado. Por isso, teve o merecido agradecimento do público. Recosto-me então no assento, fecho os olhos e chego à seguinte conclusão: afinal, o que aquele grupo de compatriotas trazia no subconsciente, não era um minúsculo ponto no meio do Mar Mediterrâneo. Era a pompa estrelada e colorida, do magistral Circo Cardinali.
Q.P.

15 comentários:

  1. É de facto um circo, hoje em dia, viajar de avião, especialmente em rotas de índole quase exclusivamente turísticas. Quanto às refeições, já lá vai o tempo em que se comia de faca e garfo e havia até possibilidade de escolha de menus.
    O Quito descreve na perfeição o circo Cardinali em que se transformou o seu voo para as Baleares. Sorte teve ele, porque comigo já aconteceu viajar num circo de bem menores pergaminhos. Uma espécie de circo Maravilhas...
    Estava em Bissau sem passagem de retorno a Lisboa no avião da TAP. Aproximava-se o Natal de 1991 e eu não queria por nada passá-lo na Guiné. Aconselharam-me a marcar passagem para Dakar na Air Bissau e dali na Air France para Paris. De Paris para Lisboa garanti a desejada passagem para Lisboa num avião da TAP.
    Embarquei em Bissalanca, rumo a Dakar, num velho Antonov que parecia ter andado nalguma guerra de África.
    Já no ar, reparei preocupado, que a sua rota, em vez de ser para Norte se desviara quase em sentido oposto, para Sudoeste. Ninguém me explicou nada. A hospedeira apenas me confirmou com o ar mais cândido que o avião aterraria em Dakar. Quando aterrou uma hora e meia depois, vi que a gare do aeroporto exibia em grandes letras: Ouagadougou – Burkina Faso.
    Ali estivemos pouco mais de uma hora. O avião, até aí quase vazio, encheu-se de passageiros. Levantou voo, agora sim em direcção a Norte.
    Em Dakar, finalmente, explicaram-me que havia muitos passageiros sem voo, em Ouagadougou e que a Air Bissau tinha decidido alterar a rota para os ir buscar. Sem qualquer aviso...

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  2. Escrevi Sudoeste mas era Sudeste que queria ter escrito.

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  3. Há muitos anos, o Miguel Esteves Cardoso, reuniu uma colectânea de textos seus, a que deu o nome de "A causa das coisas". Verdadeiramente hilariante.
    Entre os textos avulso, havia um que se chamava "A aventura do Benfica". Tratava-se de uma viagem de avião carregado de benfiquistas, que iam ver a Roma a final da UEFA, Benfica - Ajax. É de ir às lágrimas. Desde o "motim" entre a massa adepta, indignada com o operador turístico, que lhes queria mostrar Roma e eles só lá tinham ido para ver o Benfica, às peripécias no avião, onde ninguém falhava um passagem de cafeteira. Depois o compadre alentejano gordo que dizia : "é a primeira vez que ando nesta porra" . De facto, recordando o livro do MEC e a realidade que vivi, não me parece que tivesse havido grande diferenciação nos argumentos e comportamentos. Somos mesmo assim. Gloriosos.

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  4. Por mim de viagens são muito curtas.
    Por norma ando a pé, e de PÉ.
    Num país de cavacos e silvas, é aguardar por melhores tempos.
    Tonito.

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  5. Está bem pintado este quadro que retrata o tormento(que é para mim andar de avião!,não só para mim mas para muitos mais!
    Mas contado assim, até parece uma festa!
    Ainda batem palmas nas aterragens?
    Eu nem força para isso tinha!
    Prefiro ir ao circo Cardinal!
    Jamais me esquecerei da primeira vez que andei de avião.
    Para os Açores!
    Nem me mexia no assento, com medo de dequilibrar o avião.
    Mas à minha frente ia um miudo, que para me pôr
    os poucos cabelos de pé, saltava em cima do assento!
    O mínimo que lhe chamei(sem mexer os lábios) foi filho da P...!

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  6. A viagem de avião é sempre um acontecimento único.
    O Quito relata com fino humor este "circo" a que só faltou as peripécias que uma ida ao WC sempre acarreta. Isso, faz-me lembrar que no trajeto de Lisboa para Frankfurt uma senhora que, desesperada por tantas vezes se levantar para ir fazer as suas necessidades e sempre encontrar o WC ocupado, na última vez que o fez, e ao ver que de novo se encontrava ocupado encostou-se à porta, contorceu-se, e disse "não aguento mais" e urinou-se pelas pernas abaixo.
    Quito, gostei desta tua aventura.

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  7. Aquilo que para quase todos nós é uma simples viagem de avião, é para o Quito um manancial para a sua extraordinária capacidade de observação.
    Depois, o seu gosto pela escrita faz o resto e presenteia-nos com mais um precioso texto carregado de inteligente humor.

    O aplauso para o piloto é, de facto, um hábito bem português que nos remete para a arte circense.
    Confesso que, por uma vez, também bati as minhas palmas. Foi a forma de descarregar os nervos, após um voo Moscovo-Lisboa onde apanhei o maior "cagaço" da minha vida. Foram horas a apanhar "porrada", dentro de um Tuponov que já devia uns anos à sucata...

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  8. Não me leves a mal, querido amigo Abilio...mas a tal senhora que não conseguiu vaga no WC, "urinou-se pelas pernas abaixo", coisa assaz normal em tais circunstâncias.
    Seria caso para maior admiração e galhofa se o tivesse feito pelas "pernas acima"...

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  9. Este comentário foi removido pelo autor.

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  10. Felício, pois a galhofa existiu na mesma.
    A coitada da senhora nem sabe por onde o fez, foi tal a atrapalhação que acabou por escorregar e se escarrapachar em cima do que tinha acabado de fazer.
    A "salvação" foi a abertura da porta do WC por um transpirado gordo que mal cabia na porta, que ao ver a cena disse "podia ter batido à porta"...aí foi a galhofa geral.

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  11. Paizito. No teu comentário penso estar uma pequena imprecisão. A viagem dos benfiquistas penso ter sido a Estugarda ver a final da Taça dos Campeões com o PSV. E o guia queria ir-lhes mostrar a catedral de Colónia salvo erro entre protestos de "eu só cá vim ver o Benfica, quero lá saber da catedral !!?!?"

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  12. Os episódios rocambolescos são os mais recordados!
    O Quito nem dorme, só para nos dedicar os seus escritos... Boa!

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  13. Gonçalo
    Foi mesmo em Roma. A Lurdes, mulher de um empreiteiro de Oliveira de Azeméis, na Capela Sistina, de nariz no ar a comentar os "frescos" de Miguel Ângelo, teve a seguinte tirada: " não desgosto, mas as cores são demasiado fortes para o meu gosto e cá para mim, ainda não vi artista "comó" Ferreira, que trabalha "pró" meu homem e fez um Pluto e Pato Donald lá na parede do infantário da minha filha que o raio dos bonecos até pareciam que estavam vivos !!!".
    Face a esta e outras peripécias, a tripulação da TAP requereu à Gestão da Companhia, um suicídio colectivo na pista do Funchal ...

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  14. Golo!
    Que grande remate final,Quito.
    Um abraço.
    RL

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