quinta-feira, 8 de setembro de 2011

NÃO HÁ TROCO!


Inaugurado por meia dúzia de homens de boa vontade, dedicando muito do seu tempo no arranque e desenvolvimento da novel agremiação popular, o Clube Recreativo do Planalto, ali para as bandas do Calhabé, ganhou fama e chegou aos dias de hoje, passadas várias décadas, pleno de pujança e com uma actividade diversificada digna dos maiores elogios.
Do seu humilde orçamento, destacava-se, no capítulo dos proveitos, logo a seguir às quotizações, a rubrica de receitas do bar, de importância vital para as finanças do clube. A exploração diária era pelouro exclusivo de um dos directores. Tratava-se do Sr. Tenório que ali perdia 4 horas por noite, atrás do balcão, a servir os consócios de bebidas, petiscos, confeitarias, sandes, aluguer de baralhos de cartas e venda de senhas para acesso à sala de televisão no 1º andar, cuja entrada estava estrategicamente colocada ao lado do balcão, para melhor controle das entradas.
- Boa noite! Sai uma taça de tinto! – pediu o Sr. Marques Silva, sempre engravatado, também ele director, encostando-se displicente ao balcão, o cabelo penteado da frente para trás agarrado ao couro cabeludo por uma generosa camada de creme fixador, e o inseparável cigarro Definitivos fumegando ao canto da boca.
- São cinco tostões, informou o Sr. Tenório ao mesmo tempo que lhe enchia o copo.
- O Marques Silva pigarreou, entalou o cigarro entre os dedos, levou o copo à boca estalou a lingua dizendo que era uma boa pomada, e bateu com a moeda de cinco tostões em cima do balcão, que o Sr. Tenório se apressou a recolher e guardar.
- Já agora, dê-me um maço de “Definitivos”, disse o Marques Silva, passado um bocado, colocando uma moeda de dez escudos no balcão.
- Não tenho troco! Não lhe posso aviar o tabaco!- respondeu-lhe o Tenório.
O Marques Silva desabotoou o casaco, pôs-se em bicos de pés, apoiou as mãos no tampo, esticou-se todo e espreitou para dentro do balcão.
Fitou incrédulo os olhos no Tenório e questionou-o:
- Não tem troco? Como não tem troco?! Então aquelas moedas todas que eu estou ali a ver o que é?
- Meu amigo e Sr. Marques Silva! Vamos ver se nos entendemos. Eu disse-lhe que não tenho troco e não tenho mesmo!
Apontando para uma série de caixas de cartão onde ia guardando o dinheiro, alinhadas umas ao lado das outras, quase todas cheias de moedas, foi explicando:
- Esta primeira é a do dinheiro dos rebuçados, a outra a seguir é a do vinho, a outra das laranjadas, a seguir é a da sala de televisão, ao lado é a das sandes, a da ponta é do aluguer dos baralhos, mesmo ao lado é a dos petiscos e a do meio é a do tabaco.
Como vê, a caixa do tabaco está vazia, não há lá nenhuma moeda. Portanto, como lhe disse, não há trocos para tabaco...
O Sr. Tenório e as suas diversificadas caixas de dinheiro, pode considerar-se um precursor da chamada contabilidade analítica.
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NB.: Os factos são verídicos, as pessoas também, o clube idem. Foi o Quito que me contou em recente conversa numa festa de casamento em que ambos estivemos.
Os nomes são ficção por respeito para com homens com carolice, sacrifício e dedicação às causas colectivas, a quem se devem grandes realizações e cuja memória devemos preservar e homenagear.

Rui Felicio

15 comentários:

  1. Um dia, tive a a oportunidade de dizer aos meus amigos bairradinos, que as idades se esbateram.
    Ainda eu era um pintaínho, já o Felício era um frango adiantado. Que o mesmo é dizer, que não me passava "cartucho", imperial nos seus galões, com a barba a crescer e o cabelo à Travolta.
    Isto tudo, para dizer que a minha recruta acabou. Refundou-se uma amizade, nascida num bairro. No melhor bairro do país. E a vida tem destas coincidências: aparecemos juntos no mesmo casório, como convidados da noiva. Conversámos horas esquecidas e o Felício até deu um pé de dança já a noite ia alta.
    Inevitável falar no bairro. No nosso bairro. A história que o Felício - escrita com pena de Mestre - derramou para o papel, é verídica. O pormenor do Senhor Silva (nome fictício) a esticar o pescoço por cima do balcão, a olhar para as caixas dispostas em fila, como soldados na parada, fêz-nos rir até às lágrimas.
    Foi mais um momento de franca confraternização.
    Obrigado Felício.

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  2. O sr. Tenório era um génio!
    Devia ser ele o Ministro das Finanças. Assim, por exemplo, se faltasse dinheiro para a Educação, poderia ser que se encontrassem umas moeditas para a Saúde.

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  3. Digamos que a autorial moral é do Quito. Eu apenas fui o executor, o carrasco, tentando desjeitadamente transcrever para o papel a história que o Quito me contou e que eu desconhecia por completo.

    O mais importante, porém, é aquilo que o Quito disse em comentário. A amizade refundou-se, esbatidas que estão as idades.
    E o bairro, o nosso bairro, é tema incontornável quando nos encontramos...

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  4. Acho que conheci muito bem esse sr.Tenório...pela descrição, assenta que nem uma luva em alguém que era tão 'picuinhas' como ele ;-))
    Fartei-me de rir com a história!

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  5. O comentário anterior pertence a Teresa B.; por ter entrado aqui com outra conta, saiu também com outro nome...Mas tanto a T.B. como a Maria Teresa, gostaram muito da história do Quito, tão bem contada pelo Rui...

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  6. Um beijinho para a Maria Teresa e outro para a Teresa B.
    Ainda um dia, uma delas me há-de dizer o verdadeiro nome do Sr. tenório, para sabermos se acertou...

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  7. Dizemos sim senhor!Em e-mail, para não parecer mal...Beijinhos!

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  8. Não sei se será familiar...mas muitos de nós conhecemos um Tenório cá no Bairro.
    E emboara ele não se importe que diga quem é...fica para mais tarde.
    Até é natural que vá ler esta estória, né verdade RTP!Canal 1 o 2!!!!!
    Mas era giro que estivesse relacionada com este Tenório do texto do Rui Felício!!
    Assim sendo tenho um Tenório prá troca com as Teresas!

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  9. Nós somos assim.
    As recordações fazem BEM HÁ SAÚDE.
    Tonito.

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  10. Não havia troco mas havia um exemplar respeito pelas rubricas orçamentais...

    Desta vez, juntaram-se os nossos dois maiores contadores de estórias.
    Um "deu à língua", o outro "fez o linguado".

    Um abraço para AMBOS OS DOIS.

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  11. Então não vás mais longe. Fica já aí. Cá em casa, a minha carteira-metade usa esse mesmo raciocínio: "estes 50 euros não são para gastar, são para comprar sapatos para elas. Estes 20 euros..."

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  12. Como prometido, a Teresa B. enviou-me um e-mail onde diz qual é a verdadeira identidade do Sr. Tenório. E é de facto quem ela disse...

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  13. Somos um bairro com memória. A Teresa Bizarro, que já não vejo há muito tempo, também fez o seu exercício no caderno das lembranças.
    Sendo eu o autor moral deste episódio real, contado pelo Rui Felício, apenas venho aqui afirmar algo que me parece importante e que, de resto, o Rui fez questão de destacar: o respeito que todos os pioneiros do Bairro nos merecem. Eles foram a semente de um grande projecto associativo, que teve pernas para andar. Já é longa a caminhada. Aos mais novos e aos outros, resta dignificar uma obra que nos pertence a todos...

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  14. Quito, se soubesses as saudades que tenho do café das manhãs de domingo!!!Nunca mais consegui sair para vos encontrar, que 'outros valores mais altos se alevantam'...Esta história, como todas as que tu e o Rui partilham connosco, é uma maravilha.
    E quando a li, dei uma gargalhada, por ter 'visto' logo o finório do Tenório, cujas histórias davam pano para mangas...
    Beijinhos a todos!!!

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  15. Teresa, isto de nos encontrarmos só virtualmente...bolas, nem uma manhã dominical?!
    Surpreende-nos!

    A minha mãe também tinha esta prática das caixinhas.
    Uma para os selos, outra para o arranjo das meias de vidro, outra da caixinha dos furos de chocolates...
    Por vezes uma caixa emprestava a outra, mas deixava um vale com a quantia retirada!
    As contas não podiam falhar, havia prazos para pagar aos fornecedores e havia de se saber o lucro...
    Outros tempos, de grande rigor e sem subsídios.

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