quarta-feira, 24 de agosto de 2011

BIBLIOTECA "ENCONTRO DE GERAÇÕES" João Ferreira

           A CULPA
Corria um Julho sufocante. Nesta Coimbra, de frondosos jardins, com um rio largo e amigo, banhada de juventude que sobe e desce a colina da Universidade, há sempre uma sugestão de verde e fresco que aquele mês tentava encarniçadamente negar.
No escritório, o calor, temperado pela aragem quente da ventoinha, fazia-se sentir com alguma impiedade.
A cliente seguinte tinha acabado de se sentar. Relativamente baixa, grande obesidade, visivelmente afogueada, faces viçosas ruborizadas, era a imagem caricatural daquele verão. Com uma revista fazia rodar o punho com rapidez, abanando-se angustiadamente. Um vestido justo, branco com bolas vermelhas, fazia-a mais cheia e acalorada. Grandes manchas de transpiração marcavam o vestido junto aos sovacos. A testa, de grande dimensão, luzia polvilhada de bolhas de suor que a outra mão limpava com frequência a um lenço já encharcado. De cabelo ruivo apanhado no cimo de forma a libertar o pescoço, pele salpicada de pequeninas manchas acastanhadas, aparentava ser ainda bastante jovem. Nunca mais de trinta anos.
- Faz favor de dizer! Comecei eu.
-Bem, vou contar tudo!
Limpou uma vez mais a testa, ajeitou-se melhor transbordando na cadeira que ia resistindo.
- Sempre me dei bem com o meu marido. Casámos há dez anos e temos dois filhos, um com nove e outro com seis anos. O Carlos foi sempre bom pai. Muito amigo! Trata-os com muito carinho e dá-lhes toda a atenção possível.
Com o lenço apertado entre os dedos grossos e fusiformes, voltou a limpar a testa e os olhos que, entretanto, começaram a lacrimejar.
- Há uns tempos que andava a chegar mais tarde a casa. Saía depois de jantar e deixou de ter comigo o carinho que tinha antes. Quando lhe dizia que estava modificado, dizia-me que era doida e que não via que andava atrapalhado com o trabalho. Depois começou a mostrar-se agressivo e sem paciência. A dizer coisas que me ofendiam e nunca tinha ouvido antes.
- Como por exemplo?...
- Gorda! Parva e doida era sempre!
Procurou na sua bolsa outro lenço e limpou, de novo, a testa e olhos.
- Andava desconfiada, mas pensei que eram afigurações minhas. Uma amiga disse-me que o tinha visto com uma moça, colega dele. Mas, naquela altura, não liguei! Era natural que fosse encontrado a falar com uma colega de trabalho. Isso não queria dizer que andassem…
- Há quanto tempo é que a sua amiga lhe disse isso?
- Talvez há uns quatro ou cinco meses.
- E depois?
- O meu marido já não pára em casa, não quer saber dos miúdos e até falta com o dinheiro para as despesas. No outro dia, porque lhe pedi dinheiro com insistência, deu-me um empurrão que malhei logo, estendida no chão. Não posso com isto. Não posso admitir que ele me faça isto.
-Na verdade, quando as coisas chegam a esse ponto…
- A minha vida é um inferno! Sinto-me traída! Trocada por outra! Ofendida! Eu queria provas. Custava-me a crer que aquilo me estivesse a acontecer. A mim!
- E já tem provas?
- Já! Por isso só agora vim ter com o sr. dr..
- E que provas?
- Ao virar os bolsos das calças, para as lavar, encontrei um papel. Este!
Desembrulhou um papel que dizia: “Meu querido”, espero-te logo à noite. Estou sozinha! Hoje vamos fazer uma festa grande! Tua Glória.”
- Grande porca! Uma festa!? Está tudo dito! Esta puta, estragou-me a vida! Desculpe estas palavras, mas não posso com isto!
- Sabe quem é esta Glória?
- É a mesma que a minha amiga viu com ele.
- A casa onde vivem é própria ou arrendada?
-Arrendada!
- Traga-me uma certidão de casamento, certidões de nascimento dos filhos, a identificação completa da sua amiga e vá pensando quanto é que devemos pedir a seu marido de alimentos para si e seus filhos.
- Mas, para que é que o sr. dr. quer as certidões?
-Ora, para instaurarmos a acção de divórcio! Não foi para isso que me procurou?
- Não! Nem pensar! Eu procurei o sr. dr. para me dizer como é que eu posso ser boa àquela lambisgóia. A culpa é toda dela! O meu marido foi intrujado. Porque ele é bom e sempre gostou de mim e dos filhos. Nada disso!.
Voltou a limpar a testa e, convicta:
- Vim para saber se posso pôr uma acção contra ela ou fazer outra coisa. Mas contra ela. Contra ele, nunca! Ela é que lhe virou a cabeça! É que se lhe pôs à frente! Nós as mulheres sabemos bem como isso é! Os homens vão atrás de salamaleques e não têm cabeça para ver claro.
Ele não tem culpa!
Natural de Coimbra, onde
estudou, se licenciou em
Direito e advogou.
Iniciou o seu percurso
literário, com a publicação,
em 1996, do livro de poemas
"REGISTOS DE MIM"
(faleceu a 07-12-2004)
A CULPA E A HONRA é uma colectânea de belas narrativas que, tendo como destinatário preferencial as gentes do foro, interessará ao leitor comum, na medida em que lhe revela um mundo que o inconsciente colectivo ainda imagina povoado de sombras inquisitoriais, a que o negro das vestes dá um remate de soturna gravidade. Um mundo, porém, que tem de abrir-se, de democratizar-se. E são obras como esta que nos ajuadam a compreender que os claros-escuros da Justiça são, afinal, o rosto compulsório da própria vida.(António Arnault)

2 comentários:

  1. Publicada que foi agora, e ainda bem, a sua fotografia, recordo-me bem dele. Apenas pelo nome, não conseguia lembrar-me.
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    Este conto revela-nos um dos grandes problemas da advocacia e que de muitos é desconhecido:
    - a dificuldade que muitas pessoas têm em distinguir justiça de vingança ou desforço pessoal.

    Na verdade, a justiça deve ser cega e, quando exercida, deverá sê-lo de forma plena.
    Não há justiça parcial!
    No fundo era vingança o que esta senhora, não obstante estar carregada de razão, queria que o advogado a ajudasse a obter.

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  2. Rui a irmã, Belinha tem estado presente nos aniversários do Encontro de Gerações.

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