quarta-feira, 1 de junho de 2011

NA ALDEIA, A DOIS PASSOS DO BAIRRO...

A noite caiu, ainda a Ti Amélia Pataqueira, antes de regressar a casa, arrumava a enxada no pequeno casebre de madeira onde guardou os apetrechos com que tinha estado todo o dia a amanhar a horta da pequena leira que possuía, paredes meias com o cemitério das Torres do Mondego.
Correu o ferrolho e deu a volta à enorme chave, que rangeu no buraco da fechadura ferrugenta. De todas as vezes se lhe arrepiava a pele quando ouvia aquele som a cortar o silêncio do local, como se receasse acordar os mortos do outro lado do muro. Encaminhou-se para a azinhaga íngreme de calhau rolado, polido pelos anos, em direcção à aldeia, lá em baixo. Passou em frente ao portão do cemitério, encimado por dois enormes anjos de pedra ali postados como sentinelas e guardiões do campo sagrado onde jaziam aqueles que a morte já tinha levado e que ela bem conhecera em vida.
Benzeu-se,  arremedou uma rápida genuflexão, olhou de soslaio as silhuetas das campas que o portão de ferro forjado e a claridade das estrelas deixavam entrever e aprestou-se para começar a descer a ladeira.De súbito estacou, tensa, rígida, as mãos enclavinhadas no cesto de verga onde transportara o farnel, com o coração em cavas, rápidas e violentas batidas. De dentro do cemitério, tinha ouvido um som esfusiante, parecido com o barulho do gasómetro da sua casa, quando lhe chegava o fósforo para o acender.
Virou a cabeça e viu uma luz azulada a subir da campa do Ti Zé França, que falecera há pouco mais de um mês.Desatou a correr pela quelha abaixo, gemendo de medo. Quando olhava para trás, via aquela luz azulada, aquele fantasma que a perseguia.
Já cá em baixo, entrou de rompante na taberna do Zé Brasileiro, onde alguns homens da aldeia jogavam às cartas em redor de uma carcomida mesa de madeira.
Aos olhos apavorados da Ti Amélia, e à sua respiração ofegante, corresponderam os homens da taberna com um pesado e inquisitivo silêncio.
Recobrado o fôlego, tartamudeou que a alma do Zé França vinha atrás dela!     
A Ti Amélia Pataqueira nunca tinha ouvido falar de fogos fátuos. Muito menos imaginava que são provocados pelos gases provenientes da decomposição da matéria orgânica que entram em combustão quando em contacto com o oxigénio do ar.
Nem tão pouco sabia que a deslocação do ar que a sua louca correria provocara, arrastara atrás de si a chama dessa combustão.
Rui Felício

18 comentários:

  1. Gosto particularmente dos cenários de aldeia. Do nome da Ti Amélia Pataqueira e da fechadura ferrugenta. Acredito na veracidade desta história. Mas também poderá ser um conto. As realidades são duas: a primeira, a arte de bem contar este episódio de aldeia, com todos os condimentos e a perfeita noção do universo rural.
    Depois, o fenómeno dos fogos fátuos. Acontecimento real, que, mesmo que reconhecido, impressiona quem o observa, sobretudo em noites escuras, em que é bem mais vísivel ...
    Este fenómeno, tem alimentado muita crêndice popular, com histórias absolutamente fantasmagóricas, dignas do Castelo do Drácula.
    A imaginação popular é fértil. A do Felício também. Só que no caso em apreço, o que nos é relatado pelo autor, é algo de bem real.
    Abraço Felício

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  2. Foi de facto bem real, Quito!
    Não que eu tenha assistido, mas pelo que a minha mãe e o meu tio me contaram, há já muitos anos.
    Penso que a explicação que então lhes tentei dar, sobre os fogos fátuos, não os terá convencido totalmente.

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  3. Eu já vi o assunto ao vivo.
    Para quem não sabe, o que se passa, é de fugir a
    vinte mil e quinhentos pés.
    Tonito.

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  4. Uma estória real bem contada pelo Rui Felício!
    Para além do facto em si,e que o Tonito diz já o ter vivido, o realce vai para todo o enredo numa excelente prosa que leva à compreensão deste fenómeno quimico que dá no tal fogo fátuo!
    Ainda bem que a senhora não veio a correr até ao Bairro à porta do Rui Felício...

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  5. MARIA TERESA LOUSADAjunho 01, 2011 8:51 da tarde

    Um acontecimento que é real mas que dúvido que a maior parte das pessoas terão conhecimento! A tua descrição de todo o texto, é como sempre, sublime de realismo e veracidade, mas....fiquei impressionada. Não gosto da morte,nem de cemitérios, nem de jazigos, reconheço que como católica deveria aceitar aquilo a que ninguém pode fugir, mas custa-me muito, revolta-me que essa maldita me tenha deixado só, levando-me todas as pessoas que mais amei.

    Qunto ao fogo fátuo...que Deus me livre e guarde de tal espectáculo!!!!

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  6. Quais fogos fátuos quais carapuças!
    Aquilo são almas do outro mundo sem nenhuma dúvida!...
    A justificação científica do Rui não me convence!...
    Almas do outro mundo, isso sim!

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  7. O fenómeno, que o Rui magistralmente relata, era do meu conhecimento, mas não me agradaria observá-lo.
    O Tonito deu bem o seu testemunho, de forma tão enfática,que Deus me livre e guarde de assistir ao espetáculo!

    Almas do outro mundo? Te arrenego, Santanás...

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  8. Como sempre o Felício tem a capacidade rara de nos surpreender com histórias e acontecimentos diversos, uns fruto da sua imaginação prodigiosa, outros de acontecimentos reais aos quais imprime o seu cunho pessoal, juntando as palavras e as ideias e ligando-as nesta argamassa que nos transporta para um fim de história muita das vezes surpreendente.
    Desta vez leva-nos à presença dum fenómeno raro, os fogos-fátuos, que descreve com mestria e realismo. Gostei.
    Um abraço.

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  9. O único erro da Ti Amélia foi confundir a alma do Zé França com os gases do Zé França...

    Mais um óptimo "linguado" com a assinatura reconhecida.

    Aquele abraço.

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  10. Vendo bem as coisas, há por aqui uns "cagarolas" que deveriam passar pela Conchada numa qualquer noite de verão.
    Dom Rafael, queres organizar uma excursão?
    Mesmo sem caminheta...

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  11. Gostei,Rui.
    Não gostei foi da sugestão do Biana:uma excursão ao cemitério.
    Para ver as almas basta-nos o nosso dia a dia.

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  12. Ó Biana, tem calma! Essa excursão já está marcada para todos nós, só que, penso e espero, em datas diferentes! Até vais deixar de fumar nessa excursão!...

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  13. Puxa!Vocês estao mesmo em grande forma!Hà muito tempo que comunico com a alma do FRANK ZAPPA e por isso estou plenamente de acordo com o Alfredo!Nao se esqueçam que foi ele que salvou a BRIOSA de descida de divisao hà uns anitos!!E este ano, quem sabe?Lembrem-se que nas 3 primeiras letras do pronome là està o grito de guerra FRA e ZAPPA pode-se traduzir por Zappa Aceita Proteger Plantel Académica!!!!Digam que sou doido (é o melhor elogio que me podem fazer pois detesto ser como qualquer comum dos mortais)mas contra factos nao hà argumentos!!!

    Well, texto lindissimo que nos transporta até às paisagens das nossas aldeias!Portugal, pais catolico nao festeja hoja a quinta-feira da Ascensao!Coisa muito estranha!Aqui é feriado!
    Normal, pois a popularidade do Sarkozy està a...subir!!!

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  14. Gostei de ler este texto, tanto pela sua descrição como pelo assunto. Como a mocidade já vai longe, começo a pensar que quando fôr eu... o mundo vai ter iluminação gratuita.

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  15. Óh Chico Torreira, a piada é mórbida mas fartei-me de rir ...
    Abraço

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  16. A tuapele não entendeu a finalidade da excursão.
    Trata-se de ir ver os gases e não as almas...
    Cagarola!

    O Moreirinhas é outro cagarola!
    Disfarçou, atirou o convite para o lado, por cagarolice...
    Eu penso que ele ainda não reparou num "aviso", esculpido em pedra, que diz:
    NÓS OSSOS QUE AQUI ESTAMOS PELOS VOSSOS ESPERAMOS.
    Como bom cagarola, disfarça o medo ameaçando os outros...

    Nota séria: o tal "aviso" existe mesmo, esculpido ao lado da porta de entrada do cemitério. Não garanto o rigor do seu texto mas é mais ou menos isso. Pelos menos, a ideia é essa... mais do que um aviso é quase uma ameaça.
    Um gajo lê aquilo e pensa: fosca-se!

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  17. E os gases que nos vêm da alma?
    Não contam para estatística?
    Defacto não percebi,Viana.
    Essa foi muita profunda,até às entranhas,e eu fiquei apenas pelo etéreo.
    Vou tentar acender o carbureto!
    Até amanhã.

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  18. Mas o que é que a tuapele não percebeu, carago?!

    Profundo até às entranhas? Etéreo do mais primário...

    Abraço e até amanhã.

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