sexta-feira, 25 de março de 2011

Auto-Retrato


57 anos
Canhoto

(até na vida...)
Gemini
Vive em permanência entre todos os extremos
Adora sobressair na multidão, ser único, mas necessita de espaço, de estar no silêncio: é neste que melhor se ouvem os sons... Tímido ...
Extrovertido: usa o humor como defesa


(Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo à saída da pastelaria, e lá fora — ah, lá fora! — rir de tudo No riso admirável de quem sabe e gosta ter lavados e muitos dentes brancos à mostra)

Tem problemas com as palavras, por isso recorre com frequência às dos outros (alguns outros)
Se tivesse que escolher um livro: Livro do Desassossego
Se tivesse que escolher uma música: The End
(Desperately in need of some strangerʼs hand In a desperate land)

Se tivesse que escolher um filme: Morte em Veneza
Um lugar: Paris, ou aquele miradouro na Serra da Boa Viagem
Uma palavra: Mãe
Cor preferida: preto, todos os tons de preto...
Detesta a perfeição
(O perfeito é o desumano, porque o humano é imperfeito.)

Extasia-se com (a arte de) um jogo de futebol
Desconfia da beleza da simetria, da ordem, da organização organizada
Desconfia de tudo o que é estático Que contrapõe com a elegância de um mobile soprado por uma invisível brisa
Prefere a natureza obscura e imprevisível do Caos
À Ciência da certeza prefere a Ciência da surpresa
A cegueira da Razão ofende-o, a dos Afectos deslumbra-o, mas...
Tem um problema com a expressão dos afectos
Meu Pai. Pai? Meus filhos:
Patrícia, João Pedro, Daniela
Pai?
Mal-me-quero, bem-vos-quero...
Muito!
Tem um problema com a Memória

(não se lembra de ter sido criança)
Mas tem memórias
Não sabe (soube?) brincar

Falta-lhe imaginação... para a Vida
(A vida prejudica a expressão da Vida)

Acredita que o inato domina o adquirido
Embora desejasse o contrário
Impaciente, impulsivo: tem que s(t)er tudo... já
Permanentemente inquieto
Tem embutido o sentimento de que tudo é provisório
(Eu possa me dizer do amor (que tive): Que não seja imortal, posto que é chama Mas que seja infinito enquanto dure.)


Há dois anos amputaram-lhe uma parte do corpo, mas foi a alma que mais sofreu
(agora: o desejo a desejar, só...).
Trabalhador compulsivo, usa o trabalho como refúgio
Mas cultiva o prazer de ser inútil, e acha que há uma estética no ócio
Os livros são uma necessidade compulsiva, ainda compra os que sabe que já não vai ler
Prefere Lobo Antunes a Saramago, o texto poético a tudo
Aprendeu a gostar de Banda Desenhada (Bilal, Lauzier e Pratt, muito Pratt)
Se um dia puder voltar ao mundo que seja como Corto Maltese
Gosta de roupa
(Não tem o sentido do custo, apenas do valor de uso)
De uma estética minimalista
Tem uma relação estranha com o Tempo
Se pudesse escolher um para viver, escolhia o futuro

(O este é meu norte. Outros que contem. Passo por passo: Eu morro ontem. Nasço amanhã. Ando onde há espaço: – Meu tempo é quando)


Tem um forte sentimento de posse em relação aos objectos
Não gosta de os emprestar
Gosta de oferecer sem reciprocidade
Adora gadgets tecnológicos
Não consegue ser moderado, tem dificuldades em parar, sobretudo o que sabe lhe vai doer
Tem dificuldade em ouvir os outros
Prefere a lealdade à fidelidade
Sente um fascínio na sedução
No olhar...
Aqui o seu Tempo é ... antes
O Medo não lhe habita os sonhos, antes o corpo
Tem um terror doentio da morte
Co-habita mal com os sinais do tempo no corpo

(avec le temps, va, tout s'en va. On oublie le visage et l'on oublie la voix...)

Vive dobrado sobre si

(egoísta é o que não pensa em mim...)

Odeia os fins de tarde de Domingo
Entre a quantidade e a qualidade não hesita
Detesta rotinas, convenções, preconceitos
Prefere o paralelo ao sequencial
Descartes está morto
Holístico: Entre o hemisfério esquerdo e o direito, prefere ambos
Não planeia
Cansa-se com facilidade do que faz
A persistência não é uma qualidade sua
Dispersivo
Tem uma atracção pelo impossível
Detesta burocratas, regulamentos, factores de impacto, índice H. Gosta de escandalizar os sicofantas da moral
Acha que a palavra Amigo se banalizou
Adora o Mar

(Homme libre, toujours tu chériras la mer! La mer est ton miroir; tu contemples ton âme)

Mas aprendeu a respirar na montanha
Não é crente, mas necessita de espiritualidade
As melhores (dolorosas?) viagens que fez foi ao seu interior
Detesta errar
Detesta ainda mais ser apanhado no erro
Detesta mais ainda falhar e prejudicar os que nele acredita(ra)m
Comove-se com coisas simples: A Balada de Coimbra
Mas mais, diferentemente, com as crianças órfãs de Moçambique
(sim,sim)
A Democracia para si são os direitos das minorias, os direitos de todas as diferenças
É visceralmente de Esquerda, mas não tem uma definição para o conceito
Entre o individual e o colectivo:
No político, escolhe ambos,
No social, escolhe-se a si
A Solidão é o preço da sua Liberdade
Gostava de saber o que é a Consciência
E no fim:
Gostava de poder dizer como o grande poeta dos Andes: confesso que vivi.

Jó-Jó
31 de Dezembro 2010

12 comentários:

  1. Bem vindo Jó-jó !Gostei muito de te "ver" por aqui.
    Admirável o que nos trazes, fiquei tão encantada que não me atrevo a dizer mais nada.
    Um abraço.

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  2. Já fiz uma primeira leitura!
    mais terei que fazer!
    Mas já deu para perceber que um texto desta dimensão, ou melhor este auto-retrato é do JóJó, que eu muito admiro e prezo.
    Não sei fazer um comentário que não critica pròpriamente dita, apenas porque não tenho uma capacidade interpretativa e muito menos capacidade de exposição escrita que esteja a altura deste teu auto-retrato!
    O teu auto-retato reforça a admiração e a amizade que tenho por ti!
    Um abraço, meu amigo!

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  3. O que penso do teu texto,Jójó,não é agradável.
    Parece uma missa.
    Vai à merda.
    Um grande abraço.

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  4. Há dois anos, mais coisa menos coisa, enquanto digeríamos a almoçarada de lampreia em Penacova, confessei-te da minha necessidade de tempo para digerir os teus textos.
    Com ar sério, embora com aquele sorriso sarcástico mas simpático que te é peculiar, disseste-me que não me preocupasse uma vez que tu próprio tinhas muita dificuldade em perceber aquilo que escreves...
    Junta lá isto ao teu auto-retrato.

    Desta vez, as parábolas evitadas, não precisei de muito tempo para de compreender.
    Atrevo-me a recomendar-te que alteres a poesia vinda dos Andes.
    "Confesso que estou vivo", é o que deves dizer.
    E eu, apesar da reconhecida banalização da palavra Amigo, devo garantir-te que, quer queiras quer não, sou teu amigo. ( Sem maiúscula, para não vulgarizar... )

    Grande abraço. Volta sempre, aqui ou em qualquer lugar.

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  5. Aguardava, desde o almoço de Penacova, a publicação deste auto retrato.
    Porque a escrita deste homem que paira em patamares onde o comum dos mortais, como eu, não consegue aceder, me fascina e valoriza o espaço onde é publicada.
    Não sabia o seu conteúdo, mas conhecia o seu titulo, porque o Jó_Jó mo tinha revelado.

    Talvez por modéstia,o auto retrato peque por não destacar na sua plena dimensão, a superior craveira intelectual do Jó_Jó.

    Registo uma frase aparentemente simples mas lapidar:

    "A Democracia para si são os direitos das minorias, os direitos de todas as diferenças"

    É que a verdadeira essência da democracia é isto.
    Não é aquilo que, ao contrário, a maior parte das pessoas costuma dizer, quando afirma que a democracia é a vontade das maiorias.

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  6. O Jó-Jó tem a simplicidade das pessoas de eleição, nesta passadeira de vaidades, de viscosa hipócrisia. Para aqueles que julgam que o hábito faz o monge, que a dimensão da craveira intelectual, é o prolongamento de uma vistosa gravata,esta reflexão do Jó-Jó tem a marca de quem, verdadeiramente, paira, em termos de uma carreira académica verdadeiramente brilhante, acima dos demais. O Jó-Jó, modestamente, disse-me, um dia, àcerca de algo que escrevi, que jamais terá a minha dimensão humana. Aí, errou. Tem a dimensão humana que eu, e muitos amigos comuns a ambos, têm. Mas eu, pobre mortal, jamais terei a apetência académica e a argúcia da argumentação deste amigo, por quem tenho uma grande estima ...
    Obrigado Jó-Jó

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  7. Para que fique claro:gostei mesmo do auto-retrato do Jó-Jó.Talvez que,quem não nos conhecer,possa interpretar mal as minhas palavras.Apenas tentei dar-lhes um tom ternurento.
    Tenho a certeza que o Jó-Jó as interpreta à minha maneira.
    Mas fica este esclarecimento.
    Um grande abraço.

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  8. Fazer um auto-retrato não é nada fácil, caramba!
    Inteligência inata, adquirida, natural, artificial, solidão, espiritualidade...

    Jó Jó, apesar de toda a tua eloquência e linguagem intelectual, eu consegui reconhecer-te e ficar a admirar-te ainda mais.
    Bons momentos de leitura e reflexão!
    Aceita um beijinho meu, com todo o carinho, que tu sabes ser muito especial!

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  9. "Tem uma relação estranha com o Tempo
    Se pudesse escolher um para viver, escolhia o futuro"

    Jó-Jó, quando acabamos de te ler é como tivéssemos levado um murro no estômago.
    Escreves com a coragem desabrida de quem não se quer esconder atrás das palavras, do sofisma.

    Habituámo-nos a ver-te de forma diferente, como diferentes são os grandes homens que conseguem saltar o seu tempo, e, por isso, destacámos o que escreveste, na certeza de que com a contribuição que dás neste Tempo vais encurtar o tempo de outros a atingir o Futuro.

    Gostei deste teu striptease da alma.
    Um abraço
    Abílio

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  10. Eu compreendi-te,Rui...sei bem qual a tua relação com o JóJó!

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  11. Como diz o Rui Felício este texto estava prometido desde a lampreia. Mas confesso que hesitei. Como tudo o que escrevemos, este também tem uma história, e vê-se pela data da escrita. Foi desenhado entre o Natal e o Ano Novo e, nesse tempo muito particular, sentindo uma avalanche de defeitos a virem à tona de mim, resolvi que era tempo de me (d)escrever aos meus três filhos.

    Um pouco como diz o Rui Lucas (@RL eu entendi e gostei do teu primeiro post!!) aquilo parece uma litania. Se saiu assim é porque me sinto em tempo de penitência...

    A todos agradeço as palavras. Se a solidão é o preço da minha liberdade, as vossas palavras e a vossa companhia dão sentido à minha humanidade lembrando-me que ninguém é/faz nada sozinho.

    JJ

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  12. Jó Jó,acho que te conheço relativamente bem e o
    tua auto-retrato consolidou aqueles aspectos que
    melhor de ti conheço.Mas a grande novidade foi ficar a saber que és canhoto...não sabia ou não me lembrava...canhoto, idealógicamente sabia!
    A tua transparência ao "despires-te" por escrito eleva a minha estima e amizade.
    Beijo

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