quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

ATRACÇÃO NA CIDADE

Há anos que sou cliente daquela loja de pronto a vestir para homem, na Av. do Uruguai.
Não é que seja barata, mas os fatos são de boa qualidade, a confecção é perfeita e consigo sem dificuldade encontrar o tamanho adequado sem necessidade de serem feitos arranjos, nem nas calças, nem nas mangas.
Já lá conheci várias empregadas. Tanto as que saem como as que as vêm substituir, são sempre de uma extrema simpatia, cordiais, solícitas, eficazes, competentes e, normalmente, muito bonitas. Com corpos esculturais, mulheres jovens mas já maduras e de grande beleza, não se lhes consegue ficar indiferente...
Mesmo que não tencione comprar nada, às vezes passo por lá só para ver se há novas colecções. Porém, de há um mês para cá, tenho-a visitado com maior frequência do que o habitual.
Bem...porquê escondê-lo? Confesso que tenho ido à loja só por causa dela. Está na loja há pouco tempo, é nova, trigueira, salpicada por umas quase imperceptíveis manchas acastanhadas, que fazem lembrar pequenas sardas, e que lhe dão um atractivo especial, inexplicável, de sonho.
É a sensação de uma maciez aveludada, aquilo que sinto, quando, casualmente, os meus dedos lhe tocam, provocando-me um arrepio incontrolável no corpo. Suspiro baixinho, disfarço, as ideias atropelam-se-me em turbilhão e tento controlar o desejo louco de a ter. Evito que se perceba. Se calhar, sem sucesso...
Mas...
Um choque, um aperto no coração, foi o que senti no outro dia.
À porta, ainda não tinha entrado, vejo-a pendurar-se no pescoço de um homem jovem, bem constituído, que lhe sorria, que a afagava. Pelo vidro translúcido da porta, espreitava-os e adivinhava-lhes, com inveja, um ar de grande felicidade!
Nem cheguei a entrar. Dei meia volta e regressei a casa roído de ciúmes, recriminando-me pelo meu feitio inseguro e indeciso.
Pelo caminho tentei desvalorizar o inesperado episódio. Nos tempos modernos essas atitudes são triviais, as mudanças são comuns, as aparências nem sempre traduzem a realidade e, portanto, não devia preocupar-me demasiado.
Ontem decidi-me! Venci aquela estúpida indecisão, aquele marasmo, e resolvi passar pela loja ao fim do dia. Ganharia coragem e diria a verdade! Revelaria aquilo que me trazia o coração apertado. Não perdia nada com isso, monologava eu comigo mesmo... Assim acabaria com o sofrimento que me atormentava e que não tinha razão de ser!
Cheguei lá, procurei-a avidamente com os olhos. Mas não a vi!
Perguntei por ela, ansioso.
A empregada que me atendeu disse-me que aquela bela e cara gravata de seda italiana, de um padrão invulgar, era exemplar único e que a tinham vendido no dia anterior...

Rui Felicio

20 comentários:

  1. Uma estorinha deliciosa e com uma imaginação espantosa.
    Obrigado,Rui.

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  2. E ainda não foi desta que consegui adivinhar o fim da história!
    É claro que esta gravata erótica tem que ir também para o nosso cantinho.

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  3. Os textos do Rui Felício, são uma espécie de impressão digital. É como se o Rui esticasse o dedo indicador para a almofada de tinta azul e a senhora loura, de seio farto, funcionária notarial, lhe fizesse rebolar o dedo pelo papel timbrado de um qualquer documento. E esse documento pode ser, por exemplo, este texto. Afinal, todos os ingredientes do seu prosar estão lá.O elemento feminino, o decorrer da história com o autor a levar o leitor num determinado sentido. Depois a apoteose final, surpreendente para quem lê. Eu, e alguns outros, mais avisados nestes golpes de mágica da escrita do Felício, estávamos expectantes. Afinal era uma gravata.Uma bela gravata. Como a escrita do Rui Felício ...
    Abraço

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  4. Gravata linda tem destas coisas.
    Um Abraço.
    Tonito.

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  5. Obrigado amigos.
    Tencionava ficar em silêncio e aparecer por aqui só amanhã de manhã como é hábito.
    Mas, impaciente, não resisto a pedir ao Quito que me revele onde fica o cartório notarial onde trabalha a tal loura de seio farto, para eu lhe ir pedir que me rebole o dedo numa série de documentos que levarei comigo para ela docemente mos autenticar...

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  6. - Menina, isso que está a pôr a rebolar não é o meu dedo...
    - Eu sei, senhor... mas também não é a minha série...

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  7. Pelo que vejo a São Rosas também a conhece...

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  8. Quando escrevi o comentário ao texto do amigo Rui, pressenti que algo faltava na caracterização da dita funcinária: faltou dizer que é de meia idade, que usa colar de pérolas falsas facilmente identificavel, que lhe rodeia o pescoço flácido, e uma fotografia de um neto sorridente na praia, a por areia para dentro de um balde, em cima de uma secretária atafulhada de papeis, onde pontifica uma colorida e luxuosa encadernação de uma enciclopédia de dinossauros, oferecida pela Readers Digest por ter renovado a assinatura. Rui, será que mesmo assim serve ?

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  9. Em tempo: a pôr areia para dentro de um balde...

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  10. Bem me esmifrei ao ler tão sensual texto para
    tentar adivinhar qual o objecto fetiche deste
    distinto cliente...mas em vão!
    Como um sedosa gravata pode ser tão apetitosa!
    Afinal és um simples homem de bom gosto...perversa fui eu!

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  11. É o que se chama "um golpe de gravata"!
    Fui engravatado até ao fim...embora o final não podia ser o óbvio...um convite para jantar...
    Não terás sido influenciado pela postagem do Chico Torreira sobre os chineses?
    Mas acredito que a gravata sedosa não era "glabata" dos chineses da praça do Comércio em Coimbra!
    Naquele tempo até um gravata chinese era artigo de primeira

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  12. Este bom malandro do nosso Castelão tirou-me o fio à gravata, ou melhor, o fio ao "inteligente" comentário que tencionava fazer.
    "Dar uma gravata" é uma expressão muito utilizada no Porto para dizer que alguém enganou alguém. E este "enganar" é, neste caso particular, como que dizer que "se prega uma partida" a outrem.
    Exemplificando e para que não fique qualquer dúvida: quando o Rui Felício levou um tal Benjamim à caça dos "gambusinos" , deu-lhe uma grande gravata.

    Como sempre, o Felício tece uma teia que nos envolve, nos conduz, que alimenta a nossa própria imaginação para depois, num passo de magia, nos demonstrar que a nossa fantasia não tinha razão de ser.
    Fica-se sempre com a sensação de enganados, "engravatados".
    Que saboroso engano, que belíssima "gravata"!
    Aquele abraço.

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  13. O Rui Felício tem uma forma de escrever que uma pessoa vai lendo envolvido no assunto e quando cheguei ao quarto parágrafo antes do fim, Ontem decidi-me! , disse para comigo mesmo: já lá não estava. Estava-se mesmo a ver. ÁH, é verdade: "afinal" era a gravata. Sorri-me a olhar para o texto e ... foi muito agradável lê-lo.

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  14. Com os textos do Rui Felício sentimo-nos a esgravatar até ao fim.
    Mas a imagem do Quito para a funcionária está também fora de série. Até a estou a imaginar... e nem queria.

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  15. O retrato da funcionária do cartório que o Quito fez não me desmotiva, ao contrário do que le possa ter pensado.
    Pela simples razão de que, enquanto a matrona me rebola o dedo em cima dos documentos, eu vou olhando para a fotografia do neto na praia, onde, presumo, outras louras mais importantes se alevantam...
    E, o que vem à rede é peixe!
    Ou, como diria o meu amigo Tonito, "em tempo de armas não se limpam guerras..."

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  16. Ou, como disse uma vez a minha filha Joana, "é o bolo em cima da cereja".

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  17. Lamento, Rui, que não tivesses tido a coragem de te teres decidido a tempo e de deixares escapar uma " italiana, de padrão invulgar e exclusiva"!

    Perdes-te, a divagar,a suspirar...

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  18. TERESA LOUSADA DE MENESESfevereiro 10, 2011 11:08 da tarde

    Caramba Rui!!! Nunca ouvi falar com tanto entusiasmo, tanta ternura, nem tanta volúpia...de uma gravata,seja ela da mais pura seda, seja ela italiana,ou mandada fazer por um dos sultões dos paises das mil e uma noites!!!!
    De todo este "suspense" que criáste e que me envolveu ao longo desta tua narrativa, tirei uma única e simples conclusão, meu Amigo; é que, quando na realidade se gosta e se deseja verdadeiramente uma coisa, nunca, mas mesmo nunca, se deve deixar fugir...depois é tarde, quando nos apercebemos que, o objecto do nosso desejo, cobiçado durante um tempo, por uma simples hesitação, num
    ápice...desapareceu!!!
    Foi pena Rui, que tivesses perdido essa linda gravata, de toque, cores e padrão tão invulgares....

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  19. TERESA LOUSADA DE MENESESfevereiro 10, 2011 11:30 da tarde

    Lembrei-me agora de repente, que se por acaso puder mitigar um pouco, a tua dor da perda,terei muito gosto em te oferecer uma gravata, linda de morrer,
    de textura divinal, cores suaves e padrão original e ainda com mais um atributo de que quando com ternura e delicadeza se aperta....toca música!!!!!
    Será tua, se assim o desejares.

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  20. Afinal não era uma gravata qualquer, era de seda e italina, e o preço é que fez com que durasse este namoro para além do razoável.
    Quando-se aprecia demasiado sem possuir é o que acontece...bate a asa.
    Gostei mais uma vez desta tua história e do surpreendente desfecho.
    Abílio

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