domingo, 30 de janeiro de 2011

A ultima rosa de Verão


Vieste, minha amiga, conversar comigo nesta noite fria.
Trouxeste o velho disco. Eu trouxe-te uma rosa.
Que aventura é a nossa que desafia as leis do bom senso? Quando te sentas assim a meu lado parece que vens de longe para visitar-me, ou de um passado distante; e um peso no peito faz-me sentir que as rodas do tempo nos deixaram trilhos profundos na alma.
Mas em breve, a música, o vinho e o fogo mostrarão tão só as marcas do tempo nos nossos corpos. E estas, minha amiga, aceitemo-las como atestados de sobrevivência.
Sabia que virias, e enquanto te esperava escrevi estas palavras como quem faz uma canção. Só para pôr nome ao que sinto por ti. É preciso dizer os afetos, não basta senti-los; é preciso dizê-los como se o tempo fosse pouco e houvesse o risco de algo de belo se perder. Como esta última rosa na tarde que arrefecia. Trouxe-a para lhe fazeres companhia, minha amiga. Porque sorris? Não há nada mais triste que uma rosa solitária ao frio.
Tudo o que morre renasce na reciclagem da Natureza. E tudo o que a Natureza dá avulso, o Homem organiza porque ama o belo.
É assim que dos sons faz música, das palavras poesia e das uvas, minha amiga, faz vinho.
Senta-te aqui. Ao meu lado. Ouçamos o disco que me trouxeste. Logo abrirei a garrafa.
Um dia, assusta-me concebê-lo, tudo acabará; mas o que me assusta não é o colapso do tempo, é a extinção da memória.
Sabes, a morte não assusta facilmente um ex-combatente como eu, somos velhos conhecidos. Havemos de morrer, sim; mas a Terra mãe, dos nossos restos, fará plantas e flores e frutos, e os animais alimentar-se-ão deles, e os nossos restos ganharão vida e movimento de novo. O que me assusta é saber que a memória acabará, e com ela todos os afetos. Um dia, ninguém se lembrará de nós, ninguém ouvirá o nosso disco, ninguém beberá deste vinho. Ninguém saberá que para te ver sorrir, resgatei ao frio a última rosa deste verão.

© Manuel Bastos


7 comentários:

  1. Uma parte de fantasia acredito, mas Manuel Bastos mais não faz do que contar de forma exepcional uma passagem na vida de certas pessoas que perderam esta curta passagem sem conhecerem a felicidade. A face do outro que analizam para jamais esquecerem, assim como a sensualidade que põe numa única meiguice com um simples gesto como o tocar da mão e toda a ternura num olhar que tudo diz numa lígua universal: a do amor. Foi a despedida do amor interpretado pela sua pena na visão de duas pessoas de idade avançada que transmite a quem lê que a vida, é para ser vivida. Sem dúvida que foram uns curtos momentos de leitura de um artigo melancólico mas muito profundo, que difícilmente esquecerei.

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  2. Manuel Bastos tem o dom da escrita. Por vezes, por falta de tempo ou dispersão, não temos conhecimento do muito de bom que se vai escrevendo por aí. E, por vezes, é o gosto duvidoso que prevalece em função do que o consumidor gosta. E as editoras vão atrás.Pelo que se percebe, tem mais saída os ardores amorosos de um presidente de um clube de futebol com uma donzela, do que a prosa profunda e carregada de significado do desconhecido Manuel Bastos.O Leitão vai "insistindo" em dar a conhecer Manuel Bastos. Textos com esta qualidade, são sempre uma mais-valia para o blogue ...

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  3. Também gostei deste texto de Manuel Bastos!
    Dos vários que o Leitão tem dado a conhecer foi talvez, para mim o melhor!

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  4. "É preciso dizer os afectos, não basta senti-los."

    Bela e verdadeira frase do autor.
    Que os sente e que os diz.
    E que assim se abre e se revela.
    Porque o silêncio é solidão, egoismo e indiferença...

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  5. pedaço de escrita com enorme sensibilidade...o
    mundo dos afectos sentidos e expressos que têm eco em nós.

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  6. " Se gostas verdadeiramente de alguém, diz-lhe em vida"!
    Um texto de grande beleza.

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  7. Maravilhoso! Obrigada Zé. Há realmente pessoas que acham que quando os outros dizem que os amam ficam desconfiadas. Porquê? Talvez porque na realidade não saibam o que é o amor pelos amigos e, muito menos pelo próximo. Quem me rodeia sabe que eu nunca me cuibo de dizer - gosto de ti - aquem de facto eu gosto.
    Um beijo

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