segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

MARIEMA ...

Mariema ...
Que estranha sensação esta, a minha, de insistir em regredir na Máquina do Tempo ! Fecho os olhos, e deixo-me sucumbir pelo arrastar dos dias pretéritos. De vaguear, ao sabor de um passado distante. Que estranhos sonhos estes, os meus, que me levam na vertigem das asas plúmbeas, ao encontro do sofrimento! Mas, de novo, lanço âncora na memória, e regresso aos verdes anos da minha juventude. De uma juventude despreocupada. Um dia, caí numa cilada, e arrastei a minha existência por um longínquo país africano. Guiné se chamava e chama. Prendi-me de amores, quando lá cheguei. Não por uma mulher. Mas pela explosão das cores. Por aquele Templo de manhãs resplandecentes, que me embriagavam os sentidos. Quando o “Rei-Sol” subia na vertical da bolanha, inundando a mata de uma claridade generosa. E as tardes, clamorosas de calma e serenidade. E, ao lusco-fusco, quando as estrelas já se desenhavam no Céu, o majestoso perfil dos embondeiros esculpia-se contra a abóbada imensa de um céu escarlate. E era ali, sentado debaixo da copa de uma frondosa árvore, que eu ouvia os cânticos africanos, que ecoavam pela floresta. O som dos batuques e o movimento ritmado do amassar da mandioca no pilão. Aquela simbiose única, entre o perfume dos costumes ancestrais de um povo, e a bola de fogo incandescente que descia na linha do horizonte, que fazia qualquer ente pensar que estava às portas do paraíso. Mas não. Havia a maldita guerra. Omito recordar. Não quero falar de homens, como se de feras se tratassem. Todos. Quero falar de paz. Quero falar de justiça. Quero falar de solidariedade. Quero falar de fraternidade. Quero falar de amor. Quero falar de Mariema. Era a minha lavadeira. Quinze anos de idade, talvez. Olhos grandes e pele cor de púrpura. Rápida no pensamento, fulminante na palavra. Apareceu-me no primeiro dia em que pisei terras do Gabu. Falava alto e gesticulava muito. Oferecia-se para me lavar a roupa. Aceitei. E, pelas imaculadas tardes, lá vinha ela, os olhos fixos no chão, de alvo lençol à cabeça, onde trazia cuidadosamente acondicionado, o meu trajar. No corpo, o tecido colorido que lhe moldava o porte esguio. Pressentia-lhe, no rosto, a tortura de uma vida de labuta. Numa terra onde tudo se regateava, nunca discuti o valor do seu labor. Por vezes, por brincadeira, questionava o preço que sempre lhe pagava. Apenas para ouvir a justeza dos seus argumentos. A sagacidade do seu raciocínio. A inocência do seu olhar. A Mariema foi um terno caso de amor. Um caso de amor fraterno. Ainda tenho por ela, hoje, uma comovida lembrança. Foi a minha diva de África.
Q. P.

24 comentários:

  1. O cenário desenhado pelo Quito é tão real, as sombras e as tonalidades tão bem pintadas, que até os cheiros a terra vermelha e às anilinas do vestido colorido da Mariema me assomam às narinas...

    Ia jurar estar a ouvi-la dizer ao Quito:

    - Nosso Furrié bunito! Lava roupa é manga di trabailho! Peso qui bu parti cá caro não!

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  2. Acredito que o amor do Quito pela Mariema fosse fraternal.Acredito que a alegria do desejado regresso se tenha misturado com a melancolia da despedida.
    Porque nem os penosos meses e meses em ambiente de guerra, fazem esquecer as ligações pessoais ou a beleza das paisagens que ajudaram a aliviá-los e a suportá-los.

    Obrigado Quito por seres um coração sensivel...

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  3. A envolvência deste terno caso de amor fraterno
    leva-nos a "vivê-lo"...Até, de uma forma quase tão terna quanto a tua pela adolescente lavadeira das tuas fardas da guerra!
    Mas saber descobrir momentos tão doces como este nem todos sabem...Quito, és um homem de afectos e um homem merecedor dos nossos afectos.

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  4. Ao ler este belo texto do Quito, é inevitável para quem esteve nas Colónias em serviço militar, não lhe venha à memória situações idênticas.
    Onde estive, felizmente não havia guerra! Tinhamos tempo para admirar melhor, a beleza daquela terra e daquela gente.
    Quis lá voltar 32 anos depois, apesar da distância, falo de Timor!... Chorei!... Não consegui evitar as lágrimas de emoção!
    E o Quito, hoje, mais uma vez me fez relembrar pessoas de quem tanto gostei!

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  5. Nunca regateei o preço da roupa, como disse. Apenas o fazia, por vezes, para a ver "zangada". Nessas alturas, perdia as estribeiras e chamava-me "Furié porca", porque não lhe queria dar a roupa a lavar. Mas o que ressalta da fotografia é o meu aprumo militar: camisa aberta quase até ao umbigo e a boina na cabeça ás três pancadas ...

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  6. Pois eu até acho que estás muito bem ataviado, considerando o que era vulgar ver-se no mato.
    Elegante, sedutor, bigode à Clark Gable, cigarro na mão, farda completa...
    A boina é que estava despejada na cabeça estilo Bairro Alto, mas isso era para deixar a franja do cabelo à vista e assim melhor seduzires a Mariema...

    O que o Quito não disse é que as lavadeiras quando lavavam a roupa na fonte normalmente despiam-se todas para não molharem o vestido...


    Ela era fula?

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  7. A malta não ganhou a guerra, mas conquistou as populações ( especialmente as femininas...),com a delicadeza de trato de militares como o Quito!

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  8. Pois Rui, era Fula. Tinha aqueles pequenos dois traços feitos junto aos olhos, que as distinguiam das outras etnias. Homens e mulheres.
    Realmente não te passou despercebida a sedutora franja, tipo Alcino da Mouraria. Escusavas era de falar das miúdas com a roupa molhada colada ao corpo. Lá vai o senhor administrador pôr uma bola rouge nesta postagem ...

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  9. Se era Fula não parece!
    Está bastante calma ao pé deste rufia que está ao pé dela de cigarro na mão!
    Mas despiam-se todas , tudinho? Era Rui Felício?
    Bom como o texto já foi devidamente comentado pela forma brilhante com está escrito, entendo que devo ficar pelas primeiras linhas que escrevi...e claro nada de bolinha vermelha, antes pelo contrário...verde, verde!

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  10. Que lindo esta recordação. Fui lendo e revivendo certas passagens como se estivesse a ver. Só Mariema é que nunca tive nenhuma. Já cá fazias falta. Obrigado por este bocadinho.

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  11. Ó Chico, então eras tu que lavavas a roupa?
    Quito e Rui Felício vão continuando a contar...
    Podem ficar descansados que aqui o ADM não utiliza a bolinha vermelha!
    Só em casos extremos e só depois de ouvido o "Conselho de Opinião"!

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  12. O Senhor Administrador chama-me rufia de cigarro na mão. Tudo inveja. Só um gajo da minha categoria, se passeava em cenário de guerra em trajo de passeio, a fumar uma pirisca e óculos saídos num sorteio. O Stalone quando soube das minhas qualidades de guerrilheiro, andou cinco anos num psiquiatra ....

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  13. Confirmo! O Quito tinha pinta. Nem de espingarda precisava! Se houvesse ataque, corria-os à estalada...
    Ou então contava-lhe uma história de partir os mais empedernidos corações e a guerra acabava...

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  14. Obrigado Rui. realmente o meu olhar chamejante, destroçava qualquer adversário. No caso delas era diferente. Normalmente desmaiavam, e caíam-me nos braços ....

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  15. 1º episódio: desmaiadas caíam nos braços...
    2º episódio: "vamos ver o que acontecia, quando "vinham a si"...isto é acabava o desmaio!

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  16. Viva, viva, o Quito chegou a Salgueiro!
    Mais um testemunho de uma realidade chocante, tocante e deliciosa, dentro de um contexto brutal e duro como a guerra!
    Mariema, a menina adulta que a vida obrigou a crescer...tal como o furriel magrinho, de boina afadistada.

    O Rui Felício logo romanceou, pondo a lavadeira, sem vestes e a entoar canções!
    "Sim, eu sei,tudo são recordações
    Mas, recordar é viver."

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  17. Bem,Quito,vieste desenterrar-me a memória.
    Na guerra,tive duas lavadeiras:A primeira,uma rapariga,talvez de 15 anos,herdei-a do alferes que fui render.Durou uma semana:disse-me que ia casar e ia viver longe dali e que,no dia seguinte,me mandaria uma irmã.
    Lá apareceu uma garota,talvez com 11 ou 12 anos,que se dedicou a arrumar-me o quarto e levar a roupa para lavar.Dois dias depois,aparecia com roupa(sempre impecável)e arrumava.Engraxava botas e sapatos,fazia a cama,limpava o quarto e lá partia com a trouxa...
    Uma noite,cheguei ao quarto à hora do costume(cerca das 3 da manhã),acendi a luz e vi que tinha a cama ocupada.Debaixo da manta ergueu-se o rosto de criança,com um olhar aterrado...
    Tirei a garota da cama,obriguei-a a vestir-se,dei~lhe um açoite no rabo e mandei-a para casa.
    Disse-me mais tarde que tinha sido um tio que a mandara fazer aquele "serviço".
    Nunca mais aconteceu e nunca mais vi o tal tio!

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  18. Rui Lucas uma das muitas realidades da guerra,
    esta que relatas...
    Nem todos respeitaram as adolescentes!

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  19. É verdade Rafael. Quando cheguei à Beira, tinhamos na base uma lavandaria de sonho. Mal sabia eu o pessoal que lá tinham posto. Mandei umas meias a lavar e fiquei logo ilucidado. Como a farda era de nylon, passei eu a lavá-la. À noite, depois de espremida, punha-a a secar ao lado da cama quando me deitava e no dia seguinte, deixava-a a arejar no armário, vestindo outra roupa. É claro que a lavei sempre depois do banho, nunca entrei vestido no chuveiro. No mato, no meu tempo, só o cozinheiro e mais uns tantos que até dizíamos serem demais, entravam na maioria dos aérodromos se bem me lembro. Tinhamos medo e mesmo assim aprendemos que tinhamos razão. Lavadeiras boas, foram as da Ota e... no fim de semana quando ia a casa.

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  20. Parabéns, Quito.
    A tua Mariema é mais um recorte de ti, da tua sensibilidade, do amor pelo ser humano mais desfavorecido que tantas vezes nos tens trazido, seja com a doçura do colorido guineense, seja com a rudeza do cinzento da Beira Alta.
    Um abraço.
    Ainda bem que voltaste a calçar as botas...

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  21. Tive de cá voltar.
    Depois de ler os comentários, não resisto em dizer-te que tinhas uma "grande pinta".
    Ainda gostava de saber porque é que a Mariema te põe o indicador no peito ...
    Mas isso já é querer saber de mais!

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