segunda-feira, 29 de novembro de 2010

A PUREZA INICIAL ...

" ... assim recomeça o ciclo do azeite ..."
(Foto Net)
É uma estranha comoção esta, a que me brota dos sentidos. Neste final de tarde sereno, deambulo por este vácuo do Tempo. O Sol, andou todo o dia atarefado, a querer romper por entre as nuvens. Ao longe, lá ao longe, diviso uma mancha de céu azul. E, por detrás, em pinceladas dispersas, um cenário de cor escarlate. Um quadro de Monet. Por um caminho estreito, progrido em direcção ao Juncal do Campo. O velho carro, conduz-me agora até ao topo da colina. E, lá ao fundo, esbatida contra a Gardunha, está a aldeia. Do lado esquerdo da estrada, um campo de oliveiras. Avisto um habitante daquele povo, pendurado numa escada. É hora de colher aquela dádiva da Natureza – a azeitona. Reconheço-o e aceno-lhe. É o Jerónimo. Corresponde ao meu cumprimento, com o gesto largo do boné, que lhe vai forrando a cabeça das intempéries do tempo. Que não das intempéries da alma. No chão, um enorme pano verde. É o regaço onde se acolhe o fruto. É o recomeço do ciclo do azeite. Enquanto vou descendo a colina, devagar, vem alguém ao meu encontro. É a Graciosa. Vem ligeira no seu andar. O seu jeito ladino de lidar com a vida. Se calhar vai para o lar dos idosos – penso - começar o seu turno. E, naquela calma espacial, naquele turbilhão de silêncios, um som metálico e soturno, sobressalta-me os sentidos. É o sino da aldeia. Ouve-se várias léguas em redor. Pelas suas badaladas, se medem as horas e o clamor dos dias festivos. Mas também da morte, quando bate os seus compassados “sinais”. E aí, o povo é um só. De todos os Lugares aparece gente, que se esgota por estes caminhos de Cristo. Conhecem-se todos uns aos outros, neste pequeno universo de solidariedade fraterna. E a notícia de um passamento, transmitida de boca em boca pelo badalar de um sino, é como fogo a arder em palha. Mas há os dias festivos. Nada mais triunfal, que uma festa de aldeia. É o dia de visitar as “alojas” do povoado. De provar o vinho espesso. De rumar ao largo da festa, de bandeiras enfeitado. De comer um frango, em reinadio convívio, numa mesa velha e tosca. Mas, também, de vestir o melhor fato, e acompanhar o padroeiro São Simão no seu andor. De pôr as colchas mais ricas à janela. Mesmo que modestas. Na frente, o padre vai rezando a sua ladainha, acompanhado por um séquito de fiéis. Depois a banda, nos seus uniformes azuis. O regente à cabeça do cortejo, com o seu fato aprumado. A menina de tenra idade, de saia curta e meias brancas, vai transportando o estandarte. E o homem do trombone, anafado e de bigode, com o suor a acudir - lhe ao rosto. De novo retomo a minha atenção à estrada. Deixei-me afundar nos meus pensamentos. Fui levado pela corrente dos dias sem fim. E logo à noite, quando a explosão de um outro mundo, me entrar pela casa adentro, dando-me notícias escandalosas do meu outro país, de novo cerro os olhos, num lamento. Recordo-me então do Jerónimo, pendurado numa escada, acenando-me com o boné. Aquela forma doce de caminhar pela vida. O povo na sua essência. O regresso à pureza inicial.
Quito Pereira

25 comentários:

  1. Mais uma vez,Parabéns Quito! A tua escrita é um verdadeiro "GPS" de vidas ( e situações da Vida) que nunca é demais fazer-nos recordar!

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  2. Um abraço Carlos Carvalho. A temperatura, por aqui, já deve rondar os zero graus. Da janela do meu escritório vejo cair umas pingas grossas. Vamos lá a ver se não vem aí uma noite branca.
    Toma lá outro abraço
    Quito

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  3. E,assim,presenciamos a rotina do povo serrano,desde o varejar a azeitona ao empoleirar um escadote para a colher
    sem esquecer a procissão...a labuta e
    a festa da aldeia, revisitadas pelo Quito, aprendiz do contacto com natureza, desde os seus primeiros tempos de vida, no interior do Choupal.
    Essa identidade está,profundamente,enraizada desde menininho,já desde o seu tempo de cueiros e mantém-se ainda,no tempo actual de homem de ceroulas!!!....
    Bem-hajas!

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  4. Quase que me atrevia a aconselhar-te a impedir que te entrasse em casa a "explosão de um outro mundo".
    Mas é verdade que não podemos fazer como a avestruz, fingindo ignorar que não são só "os Jerónimos" que o povoam.
    Por isso, meu caro Quito, aproveita a tranquilidade que te é transmitida por essa boa e simples gentes para equilibrar a inquietude que te sobressalta quando ouves as notícias escandalosas deste país.

    Mais um texto delicioso. Parabéns e grande abraço.

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  5. Tal e qual como o Carlos Viana, quando acabei de te ler, ia aconselhar-te a fazeres como eu.

    Desde há um mês, proibi a entrada em minha casa das notícias explosivas deste mundo doido que quer amarfanhar-nos o coração com o seu rol diário de desgraças. Raramente ligo a TV.

    Sento-me à lareira, vou saboreando um bocado de presunto ou de queijo e leio um livro.
    Ouço a chuva a bater nos vidros.
    Ou escuto os cães a ladrar a alguma trovoada longinqua...
    Mas no dia seguinte de manhã, no rádio do carro, não resisto a ouvir as últimas.
    Que invariavelmente são sempre as mesmas...
    É o vício! Parece que gosto de me irritar!

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  6. Abraço Olinda, abraço Viana, abraço Felício. Estão dois graus lá fora. Obrigado por se sentarem à lareira comigo ...

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  7. Mais um excelente texto e que de certo modo me faz lembrar a minha meninice!
    Em Penela pelos meus 6 ou 7 anos ou até menos e até aos 13 bem cedo começávamos o ciclo da azeitona!
    Só ou acompanhado algumas vezes por alguma das minhas irmãs, pegávamos no cesto e íamos para “trás do castelo”, onde havia oliveiras “sem dono”-talvez da Câmara - e apanhávamos a azeitona caída no chão!
    Não tocávamos na que estava ainda nas oliveiras!
    Mesmo nas nossas “fazendas” as “Pontes” ou o “Prado” onde também havia oliveiras o ritual era o mesmo, só que nestas mais tarde e quando chegava o tempo de levar a azeitona para o lagar, então vinham os pais, irmãos disponíveis e um “homem “contratado” para “varejar a azeitona que caía sobre uns panais, para que fosse mais fácil depois recolhê-la!
    Alguma desta azeitona , principalmente da que íamos apanhando do chão era despejada em recipientes de madeira e levava por cima algum sal.
    Daqui saía alguma para retalhar!
    Marcava-se vez no lagar do “Espanhol” e lá iam os sacos com azeitona para ser moída na grande “pia” de pedra , pelas pás que giravam ao sabor do compasso de uma junta de bois!
    Muitas voltas dei em redor desta “pia”(já nem me lembro se era assim que se chamava), com uma vara na mão para “tocar os bois: “anda amarelo”, “anda castanho” Eixe”!
    O “serviço” ou seja a “lagarada” ou "moios" era paga em medidas de azeite proporcional aos “cântaros” que se conseguia obter da espremidela nas “ceiras”, colocadas nas “prensas”.
    De uma maneira geral tínhamos azeite para todo o ano!
    Claro que normalmente havia as “tibornadas” que eram muito apreciadas: batatas a murro e bacalhau assados na fornalha e bem regado com azeite acabado de fazer!
    Já que o teu texto fala nas procissões também havia e ainda há em Penela, embora agora penso eu que menos!
    E lá ia eu com a opa algumas vezes a pegar num dos “pendões” de um bandeira ou até ajudando a levar em ombros um dos andores mais pequenos!
    Lá seguiam também os “anjinhos” condignamente representando com roupas apropiadas, os seus “santos” preferidos!
    Eu como nada tinha de anjinho…nunca me propuseram esta missão!
    E a Filarmónica Penelense de que fazia parte o meu pai , o meu avô e outros familiares, marcando o passo, executando uma peça instrumental de acordo com a cerimónia” lá seguia atrás do “Pálio”, no meio do qual iam 3 padres, sendo que o do meio era o “Arcipreste”!
    A fechar ia a multidão de fiéis que ia respondendo ao “terço” que o um dos padres recitava em voz alta!
    Era aqui que poderia entrar a magnífica interpretação de João Vilaret “ A PROCISSÃO”mas que por muito conhecida me dispenso de a publicar.

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  8. Quito, mais um bom testemunho desse tempo que se vai desenrolando ao sabor da própria natureza.
    Hoje vais ter por aí uma noite branca que convida ao conforto duma crepitante lareira. Não ligues para as notícias que elas são sempre o mesmo para nosso descontentamento. A crise não passou, não sei, e parece que ninguém sabe, para onde vamos. Há cada vez mais interdependências e quem de fora queira mandar sem saber...há um ditado que diz "quem está de fora racha lenha", quando será que nos vamos guiar pela nossa cabeça e mandamos bugiar quem não se cansa de mandar palpites? Que vão …rachar lenha.

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  9. Amigo Rafael
    Só por te trazido essas recordações de infância, valeu a pena o texto.
    Um abraço e até amanhã.

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  10. Olha Quito, muito vou lendo sobre as vossas vivências rurais.
    Na minha terra, nada disto há!
    Continuem,eu cá vou lendo,deliciada, à lareira,(aí vem o Fernando com um braçado de lenha e pinhas, compradas...)!!!
    A lenha já crepita e vós,aqui, todos juntos de mim a tagarelar!

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  11. Toda a gente à lareira!
    Eu já liguei os radiadores eléctricos e "viva o velho"!
    Burgueses...

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  12. De aquecimento tenho uma fogueira 24H por dia a arder com lenha gamada no pinhal de marrocos.
    Sou assim.
    Tonito.

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  13. Meu querido Quito!
    Parabéns por mais uma vez com a tua maneira tão simples, tão natural, tão real de descrever o dia a dia das gentes do campo, teres conseguido transportar-me para uma vivência que nunca foi a minha e que ignoro totalmente.
    Ou antes, ignorava, porque depois de ler o texto, que com tanta precisão de detalhes, nos transmites, foi como que a cada palavra tua diante dos meus olhos disparassem flashes, dando-me a a visão perfeita de uma vida dura, mas que encerra também uma certa beleza.
    Mais uma vez, fiquei rendida a esse teu dom da escrita!
    Beijinhos, meu amigo
    Obrigada!

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  14. Olha, Tonito, a Teresinha também deve ter lareira...
    Quando fores ao pinhal gamar lenha, lembra-te dela.
    Os amigos são para as ocasiões.
    Já agora, vê se gamas umas pinhas para que Dom Rafael não tenha que as comprar.
    Os amigos...

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  15. Muito adoro estes textos do Quito. Vou lendo e vendo. Quanto à lareira, uma vez no inverno em Gois ainda pequeno, estava com os pés tão quentinhos que só notei que tinha as solas a arder quando o cheiro chegou ao nariz. Por aqui usam mais fogão de sala, mas têm dado origem a muitos incêndios; não me convida. Vou dizendo como a raposa em relação à parreira: ligar o interrutor, ter 23 ou 24, pôr-me deitado no chão em cima de uma toalha de banho a apanhar os raios de sol que entram pela janela, é uma praia de inverno que dá saúde e até é mais higiénico. Há, é verdade: a "chatice" é a conta no fim do més.
    Também gostei do comentário do Rafael. Valeu a pena.

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  16. Como é habitual, o Quito escreve uns temas e duma forma, que não deixa ninguém indiferente!
    Mais um belíssimo texto!
    Obrigado, Quito!

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  17. O meu abraço a todos os amigos. Aproveito para desejar ao Alfredo uma boa viagem. Já correste mundo, por isso já nada te surpreende. Mas estou certo, que a época natalícia em Colmar tem magia ...

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  18. Acabo de notar que no meu comentário aonde se lê "Por aqui usam mais o fogão de sala", devia estar escrito: "Por aqui usam mais fogão de sala a seguir ao aquecimento central".

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  19. Deixa lá Chico, ninguém notou. Vou pôr mais umas pinhas na lareira ...

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  20. Obrigado, Quito!
    Espero que a viagem corra bem e também conto com uma magia diferente das minhas outras viagens!...
    Vou preparadíssimo para o frio! Mais do que para os fiordes da Nova Zelândia ou do Sul do Chile!... Nós vamos trazer umas prendinhas de Natal...

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  21. Em que lugar estou na lista(se é que estou...) para também poder receber uma prendinha...

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  22. ...pode ser até 30€ para recuperar o que perdi nas apostas falhadas feitas pelo Bobbyzé num cavalo que tinha um nome que influenciou na escolha da aposta...
    Desta vez o QUITO traíu o Bobbyzé e principalmente a mim!

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  23. Senti-me transportado no tempo ...

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  24. Alfredinho, meu rico filho!
    Ouvi falar em prendas! Certamente que estavas a pensar em mim, sim, porque não vejo aqui ninguém com um parentesco tão próximo como o nosso!
    Assim, não vale a pena estares a matar a cabeça a pensar nas hipotéticas prendinhas que lhes possas trazer, pensa sim, na tua mãe, que é graças a ela, que andas por esses mundos no bem bom, sempre na maior!!!!
    Contento-me com coisa pouca....uns queijos, umas pralines...e nada mais! Boa viagem, divirtam-se muito e pensem como gostaria de estar com vocês!
    Beijinhos para Ti, meu filho e para a minha nora de coração...Daisy

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  25. Teresita
    o Alf já me disse que te vai trazer um Ferrari ...em miniatura ...

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