quarta-feira, 24 de novembro de 2010

OS DESÍGNIOS DE DEUS ...

"... é a Fé que lhes ampara a vida ..."
De novo vagueio neste vale de solidão. Metro a metro, o meu velho carro vai progredindo pela recta da Esteveira. Caminho para o infinito. Numa ilusão óptica, a estrada parece estreitar-se, alargando-se à minha passagem. Vou ao encontro das montanhas. Quilómetros à frente, sou tragado por uma floresta de pinheiros. À esquerda, o cruzamento para as Sarzedas e Vale Ferradas, e, lá ao cimo, uma pequena cruz em ferro, assinala que ali terminaram a vida duas almas, num acidente rodoviário. Mãe e filha. Umas rosas desbotadas e secas pela canícula, relembram o drama. Depois, à direita, novo ramal de estrada conduz o viajante à pequena aldeia de Martim Branco, onde se pode ver o forno comunitário. Mas não é esse o meu destino. Sigo em direcção à Lameirinha. Não levo o pequeno rádio do carro aberto como é habitual, e o meu semblante vai carregado. Vou ao encontro de uma tragédia. Esta é a terça-feira em que almoço naquele Lugar, e vai-me ser difícil não ver o David ao balcão do pequeno café, que também serve de taberna. O David é a alma daquela casa, e um acidente vascular cerebral, atirou-o para uma cama do hospital. Está paralisado do lado esquerdo do corpo, mas já regressou a casa. Tem quarenta e quatro anos de idade. Cordato, afável e educado, parecia respirar saúde no seu porte esguio. Quando não estava ao balcão, ajudava a Manuela e a Ortelinda na sala dos almoços. Sei que me estimam muito. A Ortelinda trata-me por “doutor”, e de nada me vale protestar contra aquela minha ausência de estatuto “ … senhor doutor… para o almoço … tenho canja …”. Atalho: “ … Ortelinda, eu não sou doutor…”. A resposta vem-me dirigida ao coração como uma flecha: ”…ora… cá para nós é como se fosse …”. Mas tragédia atrai tragédia. E o Manuel, pai do David, doente cardíaco, não suportou a desgraça que lhe caiu em casa, e adormeceu serenamente na cama para sempre. A Dona Augusta, de que Vos falarei mais adiante, viu-se no espaço de duas semanas, sem o marido e com o filho incapacitado. E o pequeno café e o restaurante para gerir. Enquanto almoço, espraio o olhar pela sala. O ambiente é pesado. Os clientes são sempre os mesmos, e percebe-se que também assumiram a desgraça. Os olhos estão fixos nos pratos, e só se ouve o retinir dos talheres numa lúgubre sinfonia. Acercam-se então da minha mesa, e dizem-me que o David perguntou por mim. Ao terminar a refeição, por uma escadaria de mármore, subo ao primeiro andar, e entro num compartimento amplo. O David está sentado numa cadeira de braços. Uma almofada, apoia-lhe o braço esquerdo inerte. Com a mão direita, vai levando a colher à boca e sorvendo a sopa em silêncio. Ajoelho-me então junto dele, e esboço um sorriso. Não quero que ele perceba que estou a chorar por dentro. Retribui-me o sorriso, e continua em silêncio. Ausente. Vou olhando ao meu redor. Na sala, cuidadosamente limpa, encontra-se um armário com livros criteriosamente arrumados, e uma mesa redonda, onde repousam várias fotografias de família. São as recordações de dias felizes. Uma pequena imagem de Nossa Senhora de Fátima, rosto sereno, mãos postas e olhos erguidos ao céu, parece pedir a protecção Divina para aquele lar. Porque é a Fé que lhes ampara a vida. O remo a que se agarram, quando o barco parece desfeito pela tempestade. Despeço-me então do David. Desço de novo as escadas e entro na cozinha. O meu estatuto de cliente antigo, dá-me esse privilégio. Fico então frente a frente com uma mulher franzina, que carrega na roupa negra e no coração, um cardo de sofrimento. E o luto. Digo-lhe como lamento toda esta tragédia, tentando alinhar em fiadas, um muro solidário de palavras. É então que ela me olha de frente, e naquele rosto enrugado, pressinto o esgar de um sorriso heróico. Põe-me então uma mão no ombro, de uma forma familiar, e murmura-me resignada: “… são os desígnios de Deus ... Senhor Pereira … são os desígnios de Deus …”
Quito Pereira

20 comentários:

  1. São os desígnios de Deus...
    (...) o remo a que se agarram ( ... )

    É a Fé que uma imagem de Nossa Senhora de Fátima lhes incute.
    Esse estranho sentimento para o qual ainda hoje não encontro explicação racional, dá a esta gente o conforto e o ânimo para prosseguirem a vida.
    Só as belas palavras do Quito me fariam reflectir sobre isto, habituado que estou ao pragmatismo, à frieza dos rostos fechados da cidade.
    Como disse e bem o Carlos Carvalho, o que o Quito descreve é belo, embora triste.
    Vendo bem as coisas, no bulício da cidade estes dramas passam-se, mas sem beleza. São dramas tristes e cinzentos, sem futuro, sem esperança e, pior do que tudo, sem a solidariedade de uma mão amiga...

    Parabéns Quito!
    As tuas palavras são verdadeiras pedradas na nossa indiferença...

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  2. Esta triste realidade aconteceu há pouco mais de um mês. Tive este texto em arquivo, reflectindo se devia ou não, inclui-lo no blogue. Porque, de facto, é muito triste. Acredito, que muitas pessoas que visitam este blogue, estarão sempre á espera da algo de lúdico, que as divirta. Por isso, as minhas reticências em trazê-lo à estampa.Compreendo todos aqueles que possam achar este texto desfazado da realidade do blogue. A esses peço desculpa. Aos outros amigos, apenas direi que, neste meio, as realidades cruas serão talvez mais evidentes...
    Aos meus amigos Carvalho e Felício, agradeço não se terem refugiado numa cómoda indiferença. Sei que outros aparecerão. Também eu, caro Rui, me interrogo sobre esta força interior que este povo tem cimentada na religião. Para eles, tudo tem uma explicação Divina ...

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  3. Em primeira análise deste teu maravilhoso texto, devo dizer-te que como responsável-ou um dos responsáveis - por este blog, textos como este que abordam autênticos dramas de familias poruguesas, têem todo o cabimento neste blog!
    Ninguém vai ficar indeferente ao conteúdo deste drama que tão sofridamente no relatas!
    E nós que que mais de perto convivemos contigo, sabemos bem como vives estes dramas de pessoas simples e como consegues sob a forma de uma escrita brilhante,colocar-nos a teu lado a viver
    também de uma forma sofrida estes dramas!
    Bem Hajas "Sr DR".
    Para nós também és doutorado nestes assuntos!

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  4. É um desabafo lindo,dramático e real...
    E com um bom contador de estórias reais nunca
    poderás escometear estas....tão verdadeiras como todas as outras... a vida implica a morte,
    a doença e o luto!
    Aprender a ser como tu é o que falta a alguns de nós... possuir esses comportamentos de disponibilidade,solidariedade e amizade!
    Bem hajas,Quito.

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  5. "Aprender a ser como tu..." diz bem a Olinda Linda!
    Mas...a indiferença vai continuar...e o "olhar para o nosso umbigo"...será o "egocentrismo"...de tantos que se julgam seres humanos!!!
    Parabéns meu amigo!
    Jose Leitão

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  6. Mentiste! Tu és "doutor" (palavra latina "docere", que por sua vez derivou em "doctoris" - mestre, o que ensina). E tu és um mestre ; tu ensinas-nos muito sobre todos nós, sobre as nossas gentes.

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  7. Agradeço este movimento solidário. De todos os que não se sentem indiferentes ao drama desta familia. Por isso, sinto-me na obrigação de Vos dizer o seguinte: O David está agora em Vila de Rei, numa clínica de recuperação. Ao que sei, é uma unidade nova, inaugurada há pouco tempo. As notícias são relativamente animadoras, pois tem feito "milagres" na locomoção. O braço é que está mais problemático. Espero que em breve, volte ao seio da familia que anseia pelo seu regresso. E os amigos também...

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  8. Quito, todos os dias, a todas as horas estes dramas prepassam nas vidas de muita gente!
    Apanhaste essa família enlutada e doente e, como tu tão bem fazes, retrataste essa realidade dorida e, dorido nos contagiaste.
    A fé, não é só de pessoas menos cultas...É inexplicável, como diz o Felício, mas funciona muitas vezes como amparo nas aflições.
    A força da Dona Hortelina,com a ajuda divina, brilhou no seu sorriso heróico.Grande mulher!

    Doutor Quito, afinal és mentiroso, palavras sensatas do Rui Pato!

    Escreve sempre, a vida tem tantas cambiantes...

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  9. Amiga Celeste Maria
    Um pequeno apontamento, sem significado: A mãe do David é a Dona Augusta.A Dona Ortelinda é uma das funcionárias que serve nas mesas. E, neste caso, até tive a curiosidade saber, é Ortinda com "Ó". Inicialmente, julguei que seria com "H". Mas esta Otelinda é com "Ó" de bilhete de identidade. Um pequeno preciosismo num drama destes ...

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  10. ...para amenizar e porque eu sou assim, nasci assim... Rafaélie.... porque a senhora serve no restaurante assentava que nem uma luva Hortelinda!

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  11. A São Rosas chama-te Rafaelzito ....

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  12. ..achas que me assenta que nem uma luva?
    Ou queres subentender mais alguma coisa?!!!!!

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  13. Se a vida fosse feita só de coisas boas, poderia parecer descabido este teu texto tão real (como todos os que nos trazes)...
    A respeito da tal imagem e da fé de cada um, lembro que, um ano depois de uma perda grave que tive, o mesmo sucedeu à médica que acompanhava os meus piolhos; senhora assumidamente ateia, um dia que desabafou comigo, dizia-me: 'Se ao menos eu acreditasse em alguma coisa que me desse apoio...' Essa 'bengala' é tão importante, mesmo que não sirva para nada...
    Um beijo grande!

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  14. São os desígnios… ou aquilo que tem de ser, tem muita força e será…
    É o sentir fatalista do nosso povo no confronto do homem com as suas limitações.
    O Quito, mais uma vez traz-nos os dramas de pessoas simples duma forma dramaticamente real e que tem uma dimensão que, nós citadinos, desconhecemos.
    A forma como constróis a história ate a centrares no fulcro do acontecimento tem vindo a ser refinada com mestria.
    Gostei. Um abraço.
    Abílio

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  15. Não são os desígnios de Deus mas sim a vontade do Quito que aqui nos traz o seu olhar atento aos muitos dramas que vai observando.
    Como sempre, com a sua natural simplicidade, o Quito confronta-nos com realidades para muitos de nós impensáveis.
    Abraço grande, querido amigo.

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  16. É 1h,30 da madrugada! Cheguei agora a casa,cansada e com sono, mas este maldito vício de vir ver as "ultimas" ao PC e já prontinha para ir para a cama, fez com que os meus olhos descessem sobre esta tragédia e drama, que tu descreves com tanta emoção e sentimento! Infelizmente, por toda a parte existem casos iguais ou mesmo piores, mas a nós toca-nos mais profundamente os que nos estão perto e nos são queridos! Pois é querido amigo, quando se pensa, que se tem tudo, uma família que nos ama, saúde ,trabalho, amigos com quem contamos, uma vida estável e que nada de mau nos pode acontecer.....abate-se uma tragédia destas e outras, sobre nós e então é como se tivéssemos caído num buraco fundo e negro, sem possibilidades de regresso! E sós, a cada tentativa que fazemos para voltar à superfície é uma nova queda, que nos mantém nessa escuridão.
    Cada pessoa tem a sua Fé, as suas crenças e é nelas que se têm de agarrar. Não foi por acaso que D. Augusta, tinha em sua casa uma imagem de Nª Senhora de Fátima!!, e que sorte a dela! Vai ser nessa pequena imagem de barro, que ela, assim como eu tenho feito, se vai refugiar e pedir forças para mais "levemente", aceitar os tais desígnios de Deus.E vai ser com esta Fé e com este amor a Nª Senhora, que irá arranjar resignação e forças para tratar do seu filho doente e continuar em frente com a sua vida de trabalho!

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  17. Quito, comoveu-me muito este drama desta família e eu não dormiria se não escrevesse estas simples palavras. Tu conheces-me bem, sabes como sou sensível, sabes parte do que tenho passado, portanto estas minhas palavras mal alinhavadas, vão fazer com que eu durma com uma certa paz.
    Como sempre e embora triste, a tua maneira de o descrever, é de uma beleza trágica, mas muito emotiva. Beijinhos para ti e obrigada.

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  18. A realidade da vida, mesmo triste, também se deve contar. Artigos como este, aproximam-nos da essência do ser humano, pois isto vive-se em qualquer lado quase todos os dias. A diferença, é saber expô-lo e aí... Bem hajas.

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